7 Meses na América do Sul

A PUC de Santiago, o Direito chileno, o pisco e as empanadas, os Andes, o Pacífico, a Sudamérica, Rapa-Nui ... enfim, La Libertad.


30.8.07

O paradoxo do privilégio

O mais importante de qualquer viagem sozinho, ou programa de intercâmbio, é a liberdade. O que comer, o que vestir, como falar, o que fazer connosco, basicamente.

Como é já la palissiano, a liberdade tem como reverso da moeda a responsabilidade.

Tenho prueba sexta-feira de Derechos, Deberes y Garantias Fundamentales, com uma quantidade de material de leitura fisicamente impossível de dominar em tão pouco tempo. Pelo menos aqui. Opto por descansar a cabeça e saber que ainda tenho o resto do semestre para recuperar se correr menos bem [obrigado a quem inventou os eufemismos].

Afinal, estar no Chile é ou não um privilégio?
Testes em Agosto... é só mais um sinal do paradoxo em que a minha vida se transformou em três semanas.

«You can't always get what you want. But if you try sometimes you'll might find you get what you need»

29.8.07

Da efemeridade e de como sou emotivo

Como me conhecem, sabem que, apesar de ter um ar aparentemente calmo e de privilegiar a racionalização das coisas, sou uma pessoa emotiva. Um falso racional, se calhar, não sei.

Já longe vão os tempos de nervos à flor da pele, de chorar quando perdia um jogo do que quer que fosse. Mas, por exemplo, essa raiva surda mantém-se, é é canalizada de forma mais saudável. Cresci, simplesmente. Ainda existem, contudo, alguns ataques ou explosões. Aquilo a que a avó chama "a revolta do manso".

A emoção continua cá dentro. Não se manifesta em chorar a ver filmes, mau grado o ocasional nózinho da garganta. Pelo contrário, até me emociono mais a ler livros. Provavelmente, a minha imaginação leva-me a construir os cenários nos quais as cenas descritas se realizariam, sempre com o dramatismo ampliado.

É esta emoção que me aquece o coração e que às vezes também o gela. E o aperta forte. Sobretudo com mortes públicas. Lembro-me de pequeno me recusar a aceitar a morte do Ayrton Senna, sentado na sala dos netos, na longíqua casa dos avós no Restelo. De me comover com a morte do Fehér, na altura em que também escrevia um blog. Não de chorar, mas de ficar sem palavras. Do Marc Vivien Foe, até pela impressão que retive dos olhos já sem vida fixos no céu. Até do Sousa Franco. E agora, com a do jogador do Sevilha Antonio Puerta.

Não gosto de pensar na morte como não gosto de pensar no nada, ou no Universo. São coisas que me ultrapassam, e que nunca entenderei. Concentro-me mais na vida. No máximo, na efemeridade da vida.

No filme The Hours, imputa-se a Virginia Woolf a seguinte frase «Someone has to die in order that the rest of us should value life more. It's contrast. ». Deste contraste é suposto retirarmos lições; de reconhecermos a efemeridade da vida deverá nascer a vontade de a aproveitar ao máximo. Sermos melhores pessoas, quizás. Vivermos a vida ao limite, sem ligar a quaisquer fronteiras ou barreiras, para outros.

Para mim, a efemeridade obriga-me a repensar os passos que dou, certo. De deixar-me de adiar as minhas ideias e começar a concretizá-las, claro.

Só que esta semana voltei a lembrar-me, com a morte do Puerta, que afinal a nossa própria efemeridade, nesse sentido de lição de vida com a morte dos outros, só serve para nós. O que me custa, e que faz doer a vida que existe neste 1,65m de gente, é como a nossa efemeridade afecta os outros.

O Puerta deixou família, amigos e uma namorada/mulher, grávida de 7 meses. Tinha 22 anos. Chocou o mundo a sua morte pública. Choca-me a mim, também, mas sinto mais forte cá dentro os sonhos conjuntos que deixam de ser concretizados com outras pessoas. Dói-me a dor dos outros, basicamente. Nestas e em muitas outras coisas que vejo. Como as caras tristes, oblívias, que vejo no metro ou nas ruas, cuja vida parece-me não ser mais que uma rotina cinzenta, sem destino ou mesmo alegrias. Como a pobreza endémica a esta Sudamérica.

Lamechas, rídiculo, infeliz? Não me considero nada disto, mas também não tiro nenhuma lição daquilo que, afinal, sinto com mortes trágicas, nuas, desnecessárias.

Isla Negra



Pablo Neruda deixou três casas. Uma em Santiago, outra em Valparaíso e a terceira, onde viveu os seus últimos anos com Matilde Urrutia, a Isla Negra, por estar rocheada de rochas. Aproveitámos o domingo da viagem a Valparaíso para vir conhecer esta, a mais famosa.


A casa está desenhada, de certa maneira, como uma recriação da geografia do Chile, principalmente a parte isolada, dos escritórios. A parte da direita, principal, onde está a sala, repleta de elementos decorativos de navios, mascarões de proa (? tradução do espanhol "mascarones"), entre eles um, pequeno, de madeira, que representa uma mulher, semi-angélica. Nos dias de maior humidade gotas de água escorriam pela cara - "o meu pequeno milagre", chamava-lhe Neruda. Os temas náuticos mantêm-se na decoração da sala de jantar, junto à pequena cozinha onde nasceram poemas como Ode a La Cebolla ou Ode al Tomate. O quarto, no andar de cima, rodeado de janelas donde se vê todo o dia o mar e o sol, com a cama oblíqua á direcção do quadro, para que a cabeça estivesse onde nascia o sol e os pés onde este se põe.

A certa altura estou tão absorto que já me esqueci da mensagem que recebo com a notícia do golo do Porto ao Sporting. Tudo em Neruda é tão seu; é de poeta, é de uma genialidade. Ou, melhor, tudo parece ser tão simples e natural que essa é a sua genialidade.

Na outra parte da casa, estreita e comprida, como o Chile, são os escritórios. No jardim oposto ao mar vê-se um pequeno comboio, símbolo da sua infância e família - o pai era maquinista. Mais um espaço com janelas raiadas para o mar, este o dos escritórios. Colecções de fotografias de poetas que apreciava, para o inspirarem, e de navios em garrafas «contra o mar, para parecer que navegam», e de máscaras de todos os continentes. Cada divisão uma descoberta, descrito não é sentido. Urge ir lá, e sentir.

No fim, a sala do sul do Chile, da infância, da alegria. Mais colorida, esquece-se o mar. Lá está o cavalo de madeira, que Neruda desde pequeno admirava numa loja que o tinha como símbolo. Quando ardeu a loja e se salvou o cavalo, já o poeta era velho. Resgatou-o, trouxe-o para Isla Negra e preparou uma festa de boas-vindas. Amigos vieram com presentes. Três deles trouxeram caudas e penduraram-se as várias, uma na crina, de frente, outra de lado e uma atrás, claro. Assim nasceu «o cavalo mais feliz do mundo», por poder ter três caudas.

Cá fora, a âncora, gigante e oxidada, e os túmulos de Neruda e Matilde, la charcona (a despenteada).
E o mar, sempre o mar.


[a fotografia que não tirei - 150 fotografias em Valpo deixaram a máquina ko - e que me "obriga" a voltar lá para tirar]

Valpo

Fim-de-semana em Valparaíso, Valpo para os íntimos, numa viagem organizada pela Comisión de Acogida - comissão de acolhimento de alunos estrangeiros da PUC.

Saída sábado às dez da manhã. Chancho na Casa Suecia na sexta à noite. Opostos que não se atraem. Resultado - «'Tou Mico [tuga], acordei agora mesmo [10h], avisa aí que me meto num autocarro e vou ter com vocês a Valparaíso. Trata das minhas coisas no hostel, se faz favor.».

Fico meia-hora, ou mais, a tentar perceber se devia apanhar o bus na Estación Central ou em Los Pajaritos, e dou por mim noutra solitária viagem sudamericana. Acabo por sair na primeira estação de metro, mas a ter de andar a pé até à seguinte (!). Passado o primeiro percalço, logo outro; compro o bilhete, páro para comer duas empanadas - queso e pino, que é como quem diz queijo e carne - e atraso-me. Corrida para o bus, com este já em andamento a fugir do terminal. À Manel, dirão. À Manel, lá o apanho e entro.

Chegada a Valpo. Olhando para o mapa do meu guia, teria de atravessar a cidade inteira para chegar ao hostel Maison de La Mer, para onde atiraram os portugueses, enquanto todo o grupo ficava noutro hostel (?). Não pode ser, vá mas é de sair agora mesmo, nesta esquina movimentada onde o autocarro parou, e ir a pé, que é mais perto. Claro, em vez de perguntar ao motorista.

Pergunto no café em frente - «Calle General Mackenna? No, no sé. No hay ninguna.». Bonito.

Olho à volta, tento absorver o entorno (ambiente). Isto sim é Sudamérica. Avenida larga, solarenga. Feira improvisada no passeio. Gentes descedentes dos incas, tez escura, olhos rasgados. Feios, confesso. [E já me disseram que me misturo bem no meio dos chilenos, «pero un chileno guapo, super-bonito». Por supuesto.] Muitos cães vadios, espalhados ao sol, parecem mortos. São 25.000 perros para 275.000 pessoas. Vamos tirar o ar de turista; última espreitadela ao mapa e guardar o guia, preparar a pronúncia chilena (consiste em engolir os esses e as últimas sílabas e recorrer a alguns modismos que ficam para outro post). Lá está a Calle Mackenna, pequenina, ao lado da Avenida Ecuador. Pergunte-se por esta, então.

Depois de andar uma meia-hora, perguntando a direcção a cada 5 minutos para não me enganar, lá encontro a Calle. A pé, claro, para sentir este mergulho intenso em Valpo. O Lonely Guide descreve que é o segredo mais recentemente revelado do Chile, mas que há muitos que não o entendem por ser uma cidade suja, desordenada, cheia de fios eléctricos no meio dos prédios, e construída em Cerros, que dificulta a deslocação. Cerro, ou colina, que no caso se chama Yungay, e vou ter de subir quase a pique para chegar à Maison de La Mer. Malditos cerros, chego morto ao hostel. Mudo de roupa e vá de ir ter a um restaurante onde estão os portugueses. À saída do hostel a primeira rendição a Valpo, aos cerros, a tudo, como deve ser perceptível. Afinal, é Património Mundial da Unesco desde 2003.


Outra meia-hora a andar, agora mais bem disposto. E bem disposto agora a parecer mais turista. Vá de sacar da máquina a apanhar alguns aspectos de Valparaíso. Entre eles, este mini Flat Iron Building. [comparar com o original aqui.]


Lá encontro os portugueses, no restaurante Porto Viejo. Marisco e peixe, finalmente. Com eles, ou connosco, está o Stefan, alemão que já cá está há um semestre e que organizou a viagem. Não sei se para compensar termos de ficar noutro hostel, decide quedar-se com o povo tuga durante a viagem. Para o grupo de Camões ficar completo faltam duas raparigas, que juntaram à viagem a Valpo uma excursão a Viña del Mar. Há-de ficar para outro dia, para mim.

Corremos um pouco Valparaíso, depois de uma larga - e barata - almoçarada, à portuguesa. Uns 5000 pesos, ou 7 euros, a cada, para mim menos que cheguei mais tarde. A luz do sol vai fugindo mas ainda a apanhamos ao subir a um cerro, num dos muitos e típicos ascensores da cidade.



Lá de cima. O contraste entre o porto e os Cerros. A luz e as sombras. O dia e a noite.















Paragem nos dois hostels do grupo para reunir, viagens a pé e de táxi pelos cerros e por El Plán, a zona plana da cidade claro está. Ah sempre que o carro tinha espaço, era de esperar que o taxista apanhasse mais alguém para rentabilizar os lugares. Depois, jantar na típica tasca Jota Cruz (lê-se "róta cru"). Espaço chiquito, para 50 pessoas, não mais, com mesas corridas e que se partilham com quem aparecer. Só há um prato, La Chorrillana - batatas frita, cebola, carne e ovo mexido. O fígado adorou. É servido em travessas e cada pessoa pega num garfo e serve-se. Experiência sudamericana, mais uma, forte, em Valpo. A decoração é castiça; objectos, fotografias e escritos que as pessoas por lá deixam. Ao lado da nossa mesa a fotografia de um português que tínhamos encontrado com a namorada no cimo do cerro (!). Hei-de voltar e deixar a minha marca, dada a falta de caneta ou fotografia na altura.


[o grupo tuga de Valpo quase completo;
da esquerda para a direita - Chico, Manel, Bernardo, João, Diogo, Mico e Miguel]

À noite, fiesta no El Huevo, a discoteca da moda da cidade. [conselho, não levem máquina fotográfica para uma discoteca; foram mais de 150 fotografias em algumas horas, muitas delas a nada, ou chão, pés, costas, luzes]

Dia seguinte é só despertar e partir para Isla Negra, onde Neruda deixou a sua casa mais conhecida (outras em Valparaíso e Santiago que ainda não visitei) e o seu corpo, junto ao mar.

Sem dúvida voltarei, voltaremos, ao Vale do Paraíso.

28.8.07

Parrillada 2

É comum deixar os dias correrem, estando por cá. Sobretudo quando, como na semana passada, as aulas vão sendo canceladas. Era a semana académica, ou como a chamam na Faculdade de Direito, Las Fiestas de San Alfonso. Para dar um panorama geral do que se passa nestes idle days vou preparando estas Parrilladas.

Assim, por causa das tais Fiestas, dei por mim a ter uma semana passada muito pouco preenchida, apenas com o início das aulas de Espanhol, ter ido a uma ou outra festa, mas sobretudo a pairar por casa. As amizades crescem, a confiança reforça-se. Agora que falo nisto lembro-me do que se costumava dizer do Big Brother - tanto tempo na mesma casa obriga as relações entre as pessoas a desenvolver-se muito mais rápido. Certo, certíssimo. Já há uma dose grande de confiança, como estava a dizer, ao ponto de já se pregarem partidas como falsas cartas da senhoria a dizer que tínhamos de sair de casa por não cumprir as regras. [aconteceu comigo; acreditei na carta por uns minutos, até ver que não fazia sentido e ouvir o Juan, espanhol, e o Joaquín, equatoriano, a rir-se desalmadamente] E há respeito por todos, mau grado os ocasionais desaparecimentos de comida do frigorífico e de pratos do lava-loiças.

Entretanto aproveitei para cambiar as minhas cadeiras por outras. O curso agora é composto de três cadeiras de licenciatura e uma de mestrado, sendo que devo deixar uma por fazer porque não me servem todas. É uma questão de comunicar com a Faculdade em Lisboa e ver o que é melhor. São estas as asignaturas;
Derecho Procesal Penal - mantém-se;
Derechos, Deberes y Garantias Constitucionales - a mais difícil e já com prueba esta sexta-feira;
Seminário de Contratación Internacional - em inglês, muito prática;
Derecho del Medio Ambiente - a de mestrado, que eventualmente deixarei de lado.

Por fim, e dada a falta de acolhimento que o nome Manolo teve cá em casa, como já tive oportunidade de referir, vou mudar o perfil deste blog para Manu. Falta de identidade, dirão alguns. Não, é só a Sudamérica a começar a engolir-me.

Dois donuts e um chocolate quente

Na esquina da Providencia com a Las Urbinas há um Dunkin' Donuts. Lá dentro, resguardado da chuva de Santiago, numa qualquer sexta-feira, está um rapaz moreno. Lê o romance El jardin al lado, de José Donoso.

Se estiverem por Santiago numa tarde chuvosa de Inverno passem por lá e metam conversa. Pode ser em português, claro.

24.8.07

Español - Nível Superior

Como é que, sem nunca ter tido uma única aula, lição, de castelhano, sou colocado no Nível Superior de Español, o mais alto dos básicos? [acima, só o Perfeccionamento, vocacionado para a escrita]

Uma mãe orgulhosa diria «talento natural para línguas». Não sei. Sei que volta e meia releio os mails que mando para vários destinatários, e por vários motivos, aqui no Chile, e parece impossível que se considere sequer que aquilo seja castelhano, tal o montón de erros.

Bom, 27 aulas por 350$US - 253 € ao valor do câmbio de ontem - e que exigem muito mais trabalho que aos outros portugueses, colocados nos níveis Renforzamento e Avanzado.

Todos os meus colegas de curso, de austríacos a estado-unidenses, passando por uma chinesa e uma francesa descendente de berberes, já tiveram cursos de Español no passado. Chegou a hora do tuga mostrar que pode dominar a Península Ibérica e a América Latina. Somos poucos mas somos bons, somos melhores.

O meu segredo

Como de costume, volto a deixar objectos no limbo das coisas perdidas do Manel. Como diz a mãe, há-de ficar na Europa, mais provavelmente.

Desta vez foi o passaporte. Tinha estipulado como regra, para evitar que passasse por este susto, que nunca levaria o passaporte para fora do quarto a não ser para tratar de documentos oficiais ou viajar. Mesmo para ir a uma discoteca, contaria com o cartão de identificação da PUC até ter a minha cédula de identificación de residente estrangeiro no Chile. Até porque o meu BI e a carta de condução pairam actualmente no limbo, mas no das coisas roubadas, do Manel.

Como é que o passaporte desaparece dentro do cubo a que chamo quarto, perguntam-me? Não sei, não desaparece. Mas também não aparecia.

[entretanto, como tipicamente acontece quando não encontro coisas importantes, fico com uma náusea constante que afecta o humor e a capacidade de escrever, daí a pouca actividade do blog durante a semana]

O mais estranho é que enquanto o quarto estava um caos o passaporte mantinha-se quietinho em cima da mesa depois da arrumação desaparece sem deixar rasto. Entenda-se por rasto o papel de registo na Policia Internacional, que estava guardado dentro do próprio passaporte. E agora? Totalmente ilegal no Chile, sem BI para pedir novo passaporte no Consulado e sem certidão de nascimento - quem se lembraria? - para pedir novo BI. Só o cartão da faculdade e cópias de todos os outros documentos, por acaso; mas que valor têm estas cópias?

Teria eu violado a minha regra? Daquela vez quando vim buscar dinheiro para pagar o táxi terei tirado o passaporte da carteira e deixado no táxi? Roubaram-me no próprio quarto? Então porquê deixar dois telemóveis, um portátil e quase uma centena de lucas em notas no porta-documentos? Ou, mais ridículo, será que foi por acaso no caixote de lixo depois dos dias de arrumação?

Nestas alturas tenho por hábito piscar o olho a Deus, mas confesso que já abusei tanto deste tipo de expedientes que me faltava a lata para repetir desta vez pelo que não me passou pela cabeça rezar para que o passaporte aparecesse. Aliás, se não aparecesse, haveria de procurar uma lógica para que me tivesse acontecido isto ao fim de duas semanas no Chile. E aí Deus entraria certamente, não como imagem de castigo, mas reflexo da minha necessidade de crescimento, sobretudo ao nível da responsabilidade neste tipo de coisas.

«Lembra-te do Segredo», diz-me a Sanchinha, confidente e minha reserva de coragem, a única pessoa a quem conto o meu susto. Rimo-nos, claro. Um lol surge naturalmente na janela da conversação do Messenger. Qual segredo, é é passar o quarto de uma ponta à outra, pela terceira vez. E, como ensina o povo, que à terceira seja de vez. Mas por outro lado, o povo também me diz que não há duas sem três. Em que acreditar?

Levanto-me hoje, depois de lidos os jornais pela net, sem amparo. Sem recorrer a Deus, e com lições populares contraditórias, lembro-em do Segredo, da Lei da Atracção. Algo como a vontade de querer muito uma coisa pela necessidade e importância dessa coisa na nossa vida faz com que, dependendo desse grau de necessidade, ela acabe por surgir, inevitavelmente.

Passados três minutos, afinal, é três a conta que Deus fez, aparece o passaporte. Dentro do meu exemplar do Livro dos Rapazes. Curiosamente, o sub-título deste livro é Como Ser o Melhor em Tudo. Ironia pura, sou só o melhor a perder coisas, não a encontrá-las.

Segredo? Lei da Atracção? Acredito no espírito positivo, no valor do optimismo e da esperança, mas também no trabalho e na perseverança para que as coisas que buscamos se concretizem. O segredo passa por acreditar, mas para mim só faz sentido se, logicamente, se der um procurar. Até porque, às vezes, nem sequer nós próprios conseguimos acreditar, e tem de ser alguém a ajudar-nos.

Tu fizeste-me acreditar, Sanchinha. Hoje, no passaporte e na minha responsabilidade. Ontem, em mim. Assim como o farás no futuro. Acreditas mais em mim que eu próprio. Tu és o meu segredo. Obrigado.

21.8.07

14 boxers depois...

Ontem foi o meu décimo-quinto dia.

Aproveitei para lavar a roupa.
Ao secá-la e dobrá-la ganho consciência do tempo que passou, do que já fiz e conheci. E surge, inevitavelmente, a noção do muito que tenho para descobrir.

Entre essas coisas está o aprender a engomar camisas. Tenho uma dúzia. Hesito entre engomá-las eu ou levá-las a uma lavandaria, qual comodista.

Viver é aprender.

20.8.07

39 Curvas

Noite mal dormida, frio que se faz sentir em cada centímetro de pele. Porquê o sacríficio, porquê o afastar do conforto, porquê não deixar só a mera existência passar por nós, porquê a insistência em ir lá fora viver?

O sono desaparece com o gelo, primeiro toque do gelo, este primeiro como adjectivo da água do duche. O quente não é suficientemente quente.

O primeiro contacto com os portugueses. Entusiasmo pela jornada que começa. O grupo é grande, vária é a experiência de neve.

39 curvas. Curvas de 180º, com forte inclinação. 1.30h, que se transformam em duas, e chegamos a Valle Nevado.

A aula de snowboard, incluída no pacote da viagem, é despachada num terço do tempo previsto. «Vocês já sabem fazer, podem ir». A alegria de descer as pistas e sentir, mas não sentir, o frio. Ele está lá, mas a adrenalina, a concentração, a antecipação das manobras, fazem com que não esteja. E fazem com que valha a pena ser mais do que só uma existência nesta Terra, nesta Sudamérica.

Depois do almoço, a descarga de testosterona. A procura do mais além - um fora de pista. Talvez além demais, porque a certa altura não se pode descer, nem subir no saca-rabos. «Son de El Colorado, no pueden subir» Há que subir... a pé, e com a prancha às costas. Mochila de skater que me salva, com suportes para a tábua. Mas a neve, a neve fofa, convidativa a dormir, tormento para quem a quer atravessar, enterrando-se até aos joelhos. Sempre são 3000m de altitude - impossível fazer mais do que 10m de cada vez. Lembrar-me de João Garcia (esta é a minha mais alta solidão). O grupo segue separado, mas sempre todos à vista; é a solidariedade tuga que evita que alguém fique para trás. Mais de uma hora depois da descida o reencontro da pista. O alívio.


Descansa-se e desce-se mais pistas. Vive-se mais.

Acontecimento fortuito - trocam a minha prancha, desaparece. Alerta-se a polícia e a loja de equipamento. «Está uma parecida nos suportes de onde desapareceu a tua? Usa essa, não te preocupes» Espírito tranquilo, mas também prático, já que 90% do material nas pistas deve ser desta loja, tudo lá irá parar

Mais um tempinho, mais pistas, mais vontade de viver. E voltar.

No fim do dia, com o Sol já fugido dos Andes para o Mar, o cansaço acumulado não impede o sorriso nos lábios meio gretados, e a cabeça livre. De certeza que volto. Afinal, são só 39 curvas.




Parrillada 1

Super-rápido.

Os espanhóis, ou os falantes de castelhano, anseiam por dar dinâmica ao seu idioma. Daqui o uso comum da expressão "super" (do latim supra, que significa acima).

Na verdade, foi muito rápido, ou acima de rápido, que passaram os últimos dias. De uma roda-viva quinta-feira à plácida segunda-feira de hoje, os dias correram para o infinito, naquilo que só posso traduzir como a minha adaptação à vida cá.

Quinta-feira, mais um dia sozinho. Todas as idas à faculdade contêm alguma tristeza. Não, não é a minha costela de ronha a falar. É que sou o único cá da casa que é de Direito, e o campus da Faculdade é diferente da de Gestão, Engenharia, etc. Saio de casa nos dias de aulas com alguma resignação neste trajecto solitário. Abstenho-me de ouvir música, sobretudo nos transportes públicos, para me habituar a escuchar o chileno, esse falso castelhano. Já sei o caminho de cor - 20min cogendo a Avenida Suecia até à estação de metro Los Leones; 1omin de metro (Pedro de Valdivia, Manuel Montt, Salvador, Baquedano) e Universidad Católica finalmente. Duas aulas, uma das 8.30h ás 9.50h, outra das 11.30h às 12.50h, passagem pela sala de computadores pelo meio. Almoço na faculdade, modo solitário mais uma vez, para depois ir trocar as asignaturas que tenho por outras mais úteis. Hummm ainda bem que fui a estas aulas, agora que já não estou inscrito nestas cadeiras.
Depois das aulas, voltinha comercial por Santiago. Início na zona de Plaza de Armas - corresponde a uma parte do centro. Dou uma volta pela Calle Bandera, em busca de roupa de neve em segunda mão. Tudo muito barato - cerca de 10.000 pesos/13 € umas calças, o dobro para casaco - mas, convenhamos, tudo muito mau. E a minha roupa da neve em Lisboa, bem embaladinha, pronta para vir. Decido cometer loucuras - vamos comprar roupa a sério, mas barata. Sigo para a Avenida que liga o centro aos Andes - a Apoquindo, completada pelas Las Condes - depois da estação de metro Escuela Militar. [para uma noção melhor, ver plano de metro aqui] Depois de alguma hesitação, compro umas calças/jardineira baratinhas, um casaco óptimo da Peak (marca branca chilena da Columbia), uns óculos razoáveis e um capacete delicioso, com phones incorporados. Este último a minha grande compra - até porque segurança acima de tudo. Foi barato, para os padrões europeus, mas doeu, como dói sempre, comprar roupa à tonelada e gastar dinheiro.
Para terminar o dia, o primeiro cineminha no Chile. "Duro de Matar 4.0" - pipocada e pepsi no The Hoyts, uma espécie de Alvaláxia de Santiago. Ah é verdade, não dobram os filmes, os chilenos, põem só legendas. Sobem mais na minha consideração.

Sexta-feira, 17. Tocando La Cordillera pela primeira vez, com viagem a Valle Nevado para fazer snowboard. Primeiro contacto com os demais portugueses. Dia com honras de post próprio.

Segue-se outro fim-de-semana de caña. Sábado, outro partidazo - do primeiro não reza a história, quanto mais a lenda, por falta de condições para a prática da modalidade (piso encharcado); jogo empatado, último minuto, a bola sobe para o lado esquerdo do ataque, o domínio é bom, puxa a bola para dentro, ela salta e quando desce...está lá dentro, o português resolve. À noite, conhecer a casa de um dos grupos de portugueses. Apartamento enorme, vista assombrosa para a cidade e, que mais, para os Andes. Pagam o mesmo que eu (nem 200 €), cada um... A casa deles cá é melhor do que a minha, e a deles, em Lisboa. Não há palavras para mais.
Domingo calmo, a arrumar o quarto.

Mais arrumos hoje, segunda, com lavagem de roupa pelo meio. E actualização do blog.

Como vêem... Super-rápido.

15.8.07

Os primeiros dias de aulas - ou, O desespero...

Não é por nunca ter gostado muito de ir às aulas. Não é o facto de só ter tido duas semanas de férias. Não é o castelhano, ou a pronúncia chilena, dos professores. Não é por não conhecer ninguém nas aulas. Não, nada disto.

É por ser Direito. Em Portugal, no Chile, as aulas de Direito são difíceis. Mais ainda se se juntam cadeiras - asignaturas - como Fundamentos Filosoficos del Derecho. A cadeira mais abstracta que já tive, em que ainda não se usou a palavra reglas ou juridico, só trabalhámos o conceito de vida, de alma, de Deus. Ah e rezámos sempre, no início de cada aula, o que me parece normal numa Universidade Católica, mas a que já não estava habituado desde os longíquos tempos de Colégio (que velho!).

Como outras cadeiras temos Derecho Procesal Penal, Derecho Internacional y Colectivo del Trabajo e Arbitraje. Desta última só lhe vou conhecer os prazeres amanhã, jueves, às 08.30h.

Destas quatro só tenho certezas de ter equivalência a Processo Penal (nota mental - comprar o Código de Proceso Penal). E alguma esperança de que Fundamentos Filosoficos se aproveite para equivalência de Filosofia do Direito. Mas duvide que se fale da alma dos seres vegetais e de como Deus infunde a alma nos seres (ou tão pouco se reze!) nas aulas em Lisboa. Atenção, não estou a criticar as aulas de FFD - apesar das dificuldades, tenho adorado as aulas e os professores são muito bons.

Talvez, até ao fim da semana, mude algumas cadeiras para ao menos estudar coisas mais genéricas, mesmo sem equivalência, e, porque não, ter um horário mais equilibrado, com aulas um poquito mais tarde.

Até lá vou mas é aproveitar o resto do feriado.

PS - Hoje jogo o meu primeiro partidazo chileno - Casa Suecia v. Italianos (Paolo e Roberto) and friends. É para mostrar coisas bonitas!

12.8.07

Sim, ainda sou o Manel

Não sou o Manolo, nem Manuel, nem Manu.

Acordei e não encontrava as minhas chaves. O Manel, tuguinha distraído, continua aqui.

Já que falo nisto, sou capaz de mudar a minha blog-identidade para Manuel, Manu ou mesmo Portugal ou el portugués, como também me tratam. O nome não pegou, até porque acho que Manolo descreve uma profissão de má fama. No México, creio.

Risota pela casa. Toda a gente perde as chaves, mais tarde ou mais cedo.

Conformado, ao fim do dia sento-me aqui para bloggar. Pego na máquina fotográfica em cima da mesa e... sim, típico, lá estavam as chaves.

Fim-de-semana de caña

Ronceiro, o fim-de-semana vai correndo. Esperamos que o tempo passe, durante o dia, vendo televisão - não dobram as séries nem os filmes, tudo tem legendas - ouvindo música, praticando espanhol, falando dos cursos, da noite passada, dos nossos países. Sabemos que o dia segue lá fora medindo o frio que faz. Saca-se de cigarros, puxa-se mais conversas, trava-se amizades e apaga-se as saudades. Ah as saudades, que las hay, las hay. Cada que dia que passa Santiago é mais e mais a nossa casa, mas ainda nos sentimos estranhos num sítio estranho. A única maneira de nos tornarmos chilenos é deixar o fim-de-semana correr, também.

Depois, a noite. O espanhol torna-se mais fluido e se baila un rato.

Cama. A manhã passa, a tarde aparece e o fim-de-semana continua, mesmo sem darmos por ele. Reparamos que o tempo muda, mais escuro e frio, abrindo ao fim de tarde para deixar aquele fresquinho de Inverno. Acende-se aquecedores cá dentro. Lentamente, damos conta de que o fim-de-semana está a fugir. Há que fazer um esforço para o manter, porque amanhã é dia de aulas e não haverá caña, esta sensação de espírito leve, quase indiferente ao mundo fora das nossas paredes. Oh, é melhor é ir jantar que tenho aulas cedo - pronto, já está, o fim-de-semana acabou.

A primeira discoteca

Clandestino, no barrio da Bela Vista. Bairro noctívago, de bares e discotecas, nas costas da Avenida Libertador Bernardo O'Higgins, a principal da cidade, a que os chilenos tão simplesmente chamam de Alameda.

Saímos do táxi e ficamos defronte de uma casa normal. Não, é mesmo o Clandestino, clandestinamente, mas legal, inserido no meio de uns prédios baixos, com dois andares.

Uma amiga conhece alguém lá dentro, bate à porta, espreitam de lá. Entra e diz quem somos. Pagamos só duas lucas - uma luca são mil pesos - um terço do que pagam os chilenos. Bebe-se o que se bebe em Portugal e em todo o lado, a música é a mesma. O ambiente também, apesar de sermos os únicos estrangeiros. Não, aquele tipo não trouxe uma litrosa - litrona - cá para dentro! Não, pode comprar-se aqui, por 2.500 pesos, normalmente para dividir entre amigos. Peço uma, dou três lucas - agora já sabem o que é - não me dão os 500.

«hoy pero me dijiste dos lucas y media»
«sí, pero eso ha cambiado hace poco y no estoy acostumbrado todavía a ese nuevo precio»
[pausa para decidir se toparam que sou estranja e estão a tentar enrolar-me]
«se quieres te do los 500 pesos»
[desarmou-me]
«no pasa nada, no te preocupes»
[uma míuda chilena mais velha também me diz que o preço mudou mesmo e oferece os 500 pesos do barman também... que país este, tão ansiosos para me dar dinheiro]

A certa altura o DJ lembra-se de que é latino-americano e começa a pôr umas latino-americanadas que deixa loucos os de cá, do Chile ou de outros sul-americanos. Aos americanos e europeus nem tanto. Hummm, também já é tarde, chegou a nossa hora.

10.8.07

La Cordillera

E ao terceiro dia... os Andes.



Ainda não tinha reparado, não sei por causa das nuvens, do smog ou se por simples desatenção. Mas no caminho para o exame de espanhol vi. Da forma como se impõe, diria que foi La Cordillera que me viu a mim.

Solenes, como se marcassem o limite do mundo - e para a maior parte dos chilenos marca mesmo. A respiração pára por uns segundos, na tentativa impossível de absorver tudo o que os Andes transmitem. O recorte dos Andes contra o céu, limpo, transmite a ideia de que só têm duas dimensões. Não de que são feitos de papel, mas como se fizessem parte do horizonte, como se, por mais que se andasse, iríamos encontrar os Andes lá no fundo.

E, realmente, são omnipresentes. Agora, em qualquer calle, é impossível andar sem ver La Cordillera. Ou, pelo menos senti-la. E, ao cair do sol, a neve, branca e limpa, torna-se fogo. Mais um dia que segue morrendo em Santiago.

O primeiro exame

Examen de diagnóstico de Español.
Hummm... no sé.

O primeiro susto...

Estava eu cogendo la calle...

« stin, stan, stin, stan, ziiiiinc »

...um camião de caixa aberta de transporte de gás deixa cair uma botija.

Podia ser em qualquer dia em qualquer lado mas tinha de ser no meu segundo dia em Santiago.



O primeiro chancho...




...e neve.

Chancho é o calão para fiesta. Cá na Casa Suecia, da qual falarei mais quando puder, as coisas acontecem conforme os dias. Uma chica mexicana, a Nohemi, fazia anos e tinha de se festejar...bolo de chocolate, brigadeiros (especialidade mexicana!), e os primeiros goles de pisco, a aguardente chilena.

[mito - para mim, o pisco seria um canhão de alcoól etilíco, em termos de sabor e teor alcoólico, por ser uma aguardente
facto - o pisco é relativamente fraco e insuportavelmente doce, por isso não dá para beber um vasito que seja sem ficar enjoado...e as americanas ainda os misturam com sprite ou coca-cola (pis-sprite ou pis-cola) o que o coloca no caminho do intragável (imaginem beber uma caneca de leite com chocolate com leite condensado)]

Mas nem se estava a preparar grande chancho. De repente, cai neve em Santiago (não nevava desde 1991) e, animados pelo inimaginável - neve em Agosto, um choque para todos - demos por nós a transformar a sala comum numa discoteca. Com bolas de neve à mistura...

Eu, sem saber, hablava ya español com alguma segurança, circulando de grupo em grupo - com europeus, com americanos, com sul-americanos, tudo.

Para terminar, guerra de bolas de neve cá fora, com 2 graus negativos...

(-2º C, em Agosto, quando 48 horas antes estava em Lisboa com mais de 30º)

9.8.07

Mergulhar em Santiago

Frio. Inverno. Os caminhos tristes, iguais em quase todo o lado, do aeroporto Artur Merino Benítez ao centro de Santiago. Nota-se a extensão, tipicamente sudamericana, dos bairros de lata suburbanos. Há a preocupação de os iluminar bem. Não podendo realojar todos, dá-se um mínimo de condições de segurança.
A Casa Suécia...uma república...difícil de entender a casa, as pessoas, o espanhol. Alguma dificuldade em penetrar, em sentir o espírito. Foi por pouco tempo, também, menos de um dia.
De manhã, la ciudad. Os transportes públicos, a curta distância entre o centro, lojas, rebuliço, pessoas arranjadas, para uma que zona que nem sequer chega a ser periférica, mas que transpira desigualdade social latino-americana por todos os poros. Tratar da papelada. Policia Internacional e Registro Civil. Funcionam como funcionava Portugal antes das Lojas do Cidadão. Nem bem nem mal, faz-se o que se pode, com as pessoas que se tem. Mas com completa informatização, e webcams para tirar fotografias logo nos registos. E fui eu deixar 1000 pesos para tirar 5 fotografias... (desfocada pela minha máquina)
É verdade, os câmbios. O euro vale cerca de 700 pesos. Essas são as contas que faço para facilitar, porque no aeroporto venderam-me a 682 pesos. Andar a pensar que o euro vale mais do que vale ainda me vai fazer gastar mais dinheiro.

A economia está desenvolvida. O centro da cidade, o das lojas, cheio de armazéns (Paris, Panoramico, Falabela, ...), podia ser o de qualquer metrópole europeia. Mas lá está, com um pouco de atenção repara-se no uso de expedientes para amealhar o máximo que se pode. Aqui vende-se guarda-chuvas, ali amendoins com mel quentes, na entrada do metro promete-se o desvendar do futuro, dentro do autocarro toca cavaquinho um europeu de aspecto, mas que afinal é do Peru - desculpem o preconceito mas não tinha poncho nem ar de descendente dos incas, o lama perdoa-se porque estava dentro do autocarro.

Ah e ali no meio da rua já se vende, totalmente forjado, se tiver alguma coisa escrita mesmo, o Harry Potter y las Reliquias de la Muerte. Apetece perguntar, eh él muere en ese también?

Apontamento de Madrid


Ligo a televisão no quarto do hotel e tenho ideia de estar a ver a TVI. Saudades de casa?

Não. É o mesmo programa idiota de uma miúda que parece speedada à espera que lhe liguem para as pessoas dizerem nomes de coisas, que dá às três-quatro da manhã. Em Espanha também há mas juntaram-lhe um chico qualquer. Porquê fazer figura de parvo sozinho se podes fazê-lo acompanhado? Muito à frente, estes espanhóis. E nós a imitar.

A viagem mais longa

De Lisboa a Santiago do Chile são, quase exactamente, 30 horas de distância.
Para mim foram.

Horinha de viagem tranquila para Madrid. Embrenho-me nas primeiras páginas do Harry Potter. Quando dou por mim estou em Barajas - 22 minutos para o Terminal U. Um comboio sem piloto abrevia esses minutos. Espero ao pé do gate. Mais Harry Potter, Expelliarmus, Avada Kedavra. Mais um avião, mais uma viagem.

«...srs.pasajeros no hay necesidad de entrar en panico, pero hay un fallo mecanico y no podemos traversar el Atlantico, tenemos que regresar a Madrid...»

Mas em vez de voltar logo, porque não dar umas voltinhas durante duas horas entre Madrid e Salamanca? Abre-se o bar, dá-se uns cacahuetes aos passageiros.
Quando aterramos ficamos parados durante uma meia-hora. Dá tempo para apreciar alguns dos planemates - um grupo folclórico chileno, de chapéu gaúcho; uns chilenos que iriam passar a viagem no dia seguinte a aproveitar o vinho do bar aberto do voo; um casal de italianos, no qual se destaca a ragazza, já de meia idade, de dicionário na mão - "ayer ha sido lo mismo, cabrones! cabrones!"; um chico mais velho, cabelo meio comprido, estilo mesclado entre surfista e bagpacker com algum dinheiro, que saca dum portátil minúsculo e começa a falar pela net móvel, webcam e tudo.

Empurrados para hotéis, quase sem explicações. Sem comida, recorre-se ao mini-bar, o sumo de pêssego mais caro da minha vida, e a um chocolate esmagado na mochila. E as broas que ficaram em Lisboa!

De novo, de manhã, arrastados para o aeroporto. O MacDonalds da moda. Nova viagem de comboio, agora para o Terminal R. E siga, mas 13 horas. Dá para acabar o Harry Potter. Ah é verdade, ele morre, lamento.

Sair do ninho

Dizem que a família são os amigos que Deus escolheu para nós e que os amigos são a família que nós escolhemos.
A ideia, penso, é a de realçar a importância dos amigos.
Pudesse ter escolhido, a minha família seria a que tenho. Nem mais uma pessoa nem menos. As forças e fraquezas de todos revelam-se tão claramente em tudo o que fazemos em grupo, que às vezes parece que estamos a brincar com as pessoas e as famílias que se esforçam para mostrar uma coesão que provavelmente não existe.

Isto a propósito da saída de Lisboa. No limite do tempo, com coisas deixadas em casa por esquecimento - como sempre! - discussões surdas pelo meio suavizadas com um beijinho ou um afago na cabeça. Os nervos à flor da pele. O filho - um pródigo mais velho - prepara-se para fugir para a América do Sul por 7 meses. Muito tempo.

Chegar ao aeroporto.
A mãe, com a ansiedade a fugir-lhe pelos cabelos brancos, poucos, que já tem, as mãos a contorcerem-se. Mas ninguém dá por nada, forte como sempre. Parece que me está a levar ao Colégio, e que às cinco da tarde estou em casa estou em casa a ver o Dragon Ball. Não mãe, não vou estar.
A irmã mais velha, sabedora, experiente, lá resolve o peso a mais da bagagem. Abre-se mochilas, malas, sacos de plástico. Feira de ciganos. A roupa da neve salta. Discretamente passa umas notas para o bolso do irmão que indecentemente foge para longe, notas que fazem falta mas ele precisa mais. Não Constança, não preciso.
A irmã mais nova alterna entre a piadinha para quebrar o não sei quê que nos esmaga o coração e as lágrimas. Habituados à palhaçada desde pequeninos, e às discussões, sempre funcionaram como anjos da guarda um do outro. E agora? O irmão vai fazer-lhe falta. Não Mariana, não vou. Não tanto.
A avó representa a família do pai. O chauffeur leva-a ao aeroporto. O neto, o orgulho, que se arma em Che Guevara, e a avó perdoa-lhe e vai despedir-se em pessoa. Ande bem vestido, lembre-se dos contactos do avô - ah o avô, que vai ter tantas saudades - não se esqueça de ir à embaixada. Não avó e avô, não esqueço.
O cunhado, a família que cresce. Calmo, sorriso nos lábios, observa a cena. Compreende a importância, quase solenidade, da despedida, mas está um pouco de fora. Diverte-te, aproveita bem! Não Carlos, não vou!
A sobrinha chora, reclama atenção. O aeroporto ou outro sítio qualquer. As pessoas que passam. Uma cara conhecida que lhe dá um beijinho e lhe diz que volta daqui a uns meses - o que são meses? Não Teresa, não vais ter saudades, claro.
O tio, mais experiência de mundo ainda. O conselho mais sábio. A objectividade. O aproveitar das oportunidades. Para o sobrinho que se vai, a importância da sua presença, e da sua voz. Não tio, não vou deixar fugir as oportunidades.
O pai controla pelo telefone. Não pode lá ir, amargura um pouco com o dinheiro que se gasta, que se lhe foge. Mas ajuda, empurra decididamente o filho para a aventura. Sem isto não haveria chile-out. Um pouco surpreso com a força que o pai acaba por dar, por voltas que dê, o filho deixa-se ir. Não pai, não me vou esquecer.
O irmãos não estão em corpo. Estão em espírito. Pelo menos no meu. Sim Goga, vai ter de ser o homem da casa.

Peripécias que não param. A pasta do portátil que fica na Vodafone do aeroporto. Ligam-me para o telemóvel - não deixou ca nada? Já tinham evacuado a loja, seguranças de colete pegam na pasta - com as mãos, assim?! - e o portátil novo que ficava em Lisboa.

Vamos então. É a hora. Abrir as asas e saltar para o mundo.