7 Meses na América do Sul

A PUC de Santiago, o Direito chileno, o pisco e as empanadas, os Andes, o Pacífico, a Sudamérica, Rapa-Nui ... enfim, La Libertad.


18.6.08

Um bocadinho de lá, aqui

Ligo o iPod, phones nos ouvidos. Sem surpresa, a música começa a tocar, mesmo que sem pedido, e os acordes que se ouvem denunciam a música latina que aí vem.

Fecho os olhos, recosto-me ao banco. De fato aberto, gravata atirada para o primeiro canto escuro que encontro. Terminada a oral, descanso corpo e mente.

Abro os olhos, sou mais um vulto, no meio de caras semi-conhecidas, entre nomes esquecidos e os nunca aprendidos. A faculdade passa-me ao lado ou é que passei ao lado dela?

O calor abrasa, pequenas gotas de suor fogem do cabelo curto. Antecipo, não sei porquê – narcisismo? – conversas escondidas sobre mim, talvez daquelas duas raparigas ou daqueles tipos a discutir as aulas e os exames.

O ambiente de Direito – só quem o viveu é que o reconhece – sempre presente; uma mistura de sabedoria suprema com profundo sentimento de ignorância e insignificância.

Estou em Lisboa, mas nunca deixei Santiago. Ou estive em Santiago e nunca larguei Lisboa?

Nunca me deixei ir. Nem voltar. Agora não há nada a fazer; tenho de me recompôr, recuperar os estilhaços de mim mesmo, à deriva no Mundo; presos ou soltos?

Eu sei que não estou – não sou – livre. Ao menos que relembre, escreva, descreva a prisão onde livremente deixei o meu espírito fragmentado. Algures entre a Europa e a América do Sul. Um bocadinho em Santiago e outro em Lisboa. Ou o bocadinho de lá que está aqui comigo.

6.2.08

Espectros

[17 a 20 de Janeiro de 2008]

O regresso a Santiago fica marcado pela nostalgia. E pelos fantasmas, uns que lá encontrei e outros que lá deixei.

A Casa Suecia, reduzida a escombros numa das cozinhas e a residentes espalhados pelos quartos, surge como um qualquer hostel. Pior. É uma casa que já foi minha mas que ainda näo deixou de ser. Mostro orgulhoso os espaços, domino as cozinhas e as áreas comuns, mas näo tenho pessoas para apresentar às oito e meia da manhä daquela quinta-feira. A Maria, mäe adoptiva disfarçada de empregada, há-de aparecer, como a Nohemi, mexicana espampanante que se adivinha pela voz esganiçada na entrada. E a Nany, México também, que lá estava com uma irmä e uma amiga, mais os chilenos Dani (coreano de nascença) e Carlos, que ficaräo mais um semestre. Começa a compor-se, penso. Mas as conversas recaem sempre nas saídas dos conhecidos e nas próximas, muito próximas, chegadas de desconhecidos.

O Joaquín (equatoriano, um dos meus irmäos suecos mais próximos) havia de ir acordar-me já eu dormia, depois de um dia ao sol, quente, tórrido, em que mostrei Santiago ao Bessa, com os Andes como espectro por trás do smog, também ele um fantasma santiaguino costumeiro. Foi uma noite de carrete, em que passámos chanchos no Subterräneo, terminando em Casa abraçados quase a chorar diante de fotografias do nosso semestre (o Bessa ficou a dormir nessa noite, o que me permitiu umas liberdades emocionais). E o Juan (um "tío" espanhol, outro grande mano de armas), que se veio despedir de propósito dois dias depois, cujos reencontros ficaram pendentes para Madrid e Lisboa.

Mais os Icos (Mico, Chico e Kiko) e o Guilherme (os três primeiros tugas-chilenos residentes e o último companheiro das últimas semanas de semestre), que fizeram um desvio ao plano original da sua viagem para mais uma última noite comigo em Santiago. Uma noitada em que o taxista Hugo, nosso condutor nas fiestas no Chile, se despediu sudamericanamente de abraço e beijo, e em que esgotámos o que o Sala Murano, nossa discoteca de eleiçäo, nos podia oferecer, em väo procurando acima das cabeças os outros portugueses, dançando ao som do reggaeton com uma chilena menos feia (ou gira, coisa rara) que encontrassem, de "piscola" (pisco e Coca-Cola) na mäo.

E a Sanchinha (que finalmente se juntou a nós), para quem esta re-passagem por Santiago fica marcada por um espectro da alegria que teve antes, pela angústia de uma mochila perdida em Buenos Aires que lá acabou por aparecer. Umas 24 horas de espera que nos fizeram dormir uma noite clandestinos na Casa Suecia, levando-me a sair de manhäzinha, pela porta pequena, ainda que com uma mensagem gravada a verde nas paredes no hall de entrada e de recuerdos. [desfeita à dona, merecida pelo que nos cobrou em excesso nessas noites e durante o semestre]

Espectro foi também Valpo, vista à pressäo, que com o céu tapado näo mostrou metade dos seus encantos, numa visita fugidia que nos levou também a Viña del Mar - que näo conheci bem e bem que gostava - e à praia de Reñaca com aqueles tugas-chilenos.

Espectros. Fantasmas. Sombras. Fecho os olhos e vejo Santiago e a Casa Suecia deixarem correr o seu destino. As nossas marcas nas paredes, nos móveis, no cheiro da casa näo säo mais do que espectros do nosso semestre. As festas e as pessoas dos nossos cinco meses säo fantasmas que assombraräo quem lá viver, de passagem por um semestre ou outro. Sombras vivas que parecem sair das paredes e contar estórias. "E quando nevou.."; "E aquele que adormeceu aqui..."; "E quando tirámos os móveis todos e..."; "E quando o outro caíu do telhado..."; "E aquele casalinho...".

As pessoas escutaräo, assombradas, e diräo para si próprias, como eu disse em Agosto, que teräo o melhor grupo e o melhor semestre de sempre. E um de nós, ou o nosso espectro, suspirará e dirá para o ar, como cantávamos entre nós a música que agarrou o fim dos nossos dias na Casa Suecia - "I hope you have the time of your life".

Bariloche, Israel

E quando acordámos estávamos em San Carlos de Bariloche, Argentina.

[14 a 16 de Janeiro de 2008]

Ou seria Gstaad, Suiça? Ou Telavive, Israel?

Como tudo na vida, o que se absorve de sítios que se väo conhecendo depende das pessoas que lá se encontram, do que se prova, daquilo que acontece. Como para Ortega y Gasset o homem é o homem e a sua condiçäo, para quem viaja um ponto de paragem é o sítio e as suas circunstâncias.

Comparar com Gstaad é fácil de adivinhar quem conhece ou lê um pouco sobre San Carlos de Bariloche. Telavive, estarei louco? Digam-me vocês, depois de passarem, como nós, duas horas e meia de mochilas às costas, nas empinadas ruas da melhor estância de ski da Argentina (Gstaad, portanto), e acabarem nas últimas duas camas de um hostel em que, para além de dois tugas e dois equatorianos o resto do hostel é israelita ou judeu.

Jogava-se Taki (Uno), comia-se comida kosher (e nós com entradas de presunto antes de cada jantar de carne argentina comprada com antecipaçäo gulosa no supermercado), falava-se hebraico e a homepage dos computadores do hostel era o Il Gringo (que viemos a saber que é "O" guia dos judeus que viajam), nesse mesmo idioma. Discutimos abertamente o problema Israel - Palestina com uma das backpackers, sem compromissos. Conhecemos uma realidade juvenil diferente, que os israelitas da nossa idade têm todos 2 ou 3 anos de serviço militar (mulheres ou homens), antes de terem um dia, uma aula, um exame, uma cadeira feita da faculdade.

Do outro lado, de Bariloche mesmo, que acorda todos os dias radiante entre as montanhas com píncaros de neve ainda no Veräo e o Lago Nahuel Huapi brilhando azuläo, estávamos mais tranquilos. Sabíamos o que esperar. O porto de Bariloche desilude, comparado com a cidade, mas as ilhas e bosques que conhecemos (mais um tour de "homem branco de meia idade") agarram-nos. Já nos imaginamos neste "quiet peace of land", daqui a 25-30 anos, alternando entre a escrita das nossas Memórias de cachimbo na boca e as pescarias no lago e caçadas na floresta.

Por essa hora era tempo de seguir viagem rumo ao Norte, entrando de novo no Chile. Confesso que sentia um arrepio de excitaçäo à medida que sentia a minha Santiago, lar adoptivo, mais perto. Terá o Bessa apercebido-se disso? Quase de certeza. Ao menos deixou-me viver a minha antecipaçäo do regresso a Casa numa inocência quase de criança em época de Natal, ansiando abrir aquela bicicleta cuja forma se vê distintamente, pelo tosco embrulho ao lado da Árvore. Santiago já a via, encostada aos Andes como Bariloche, mas virada para o Pacíico, sem lagos e sem o hostel surreal. Sem Hostel Israel mas com Casa Suecia.

5.2.08

RN 40, Argentina

[10 a 14 de Janeiro de 2008]

A Ruta Nacional 40 desperta naqueles que conhecem a Sudamérica, e a Argentina em especial, os mesmos sentimentos que a Route 66 cria por quem ambiciona aventura ou apenas conhece um pouco de cinema e de cultura norte-americana. Acompanhando em paralelo La Cordillera, percorre todos os tipos de clima e vidas desde a fronteira Norte com o Chile até ao Sul patagónico.

Percorrida por Ernesto Guevara de motocicleta nos já nebulosos anos 50, é recomendada pelos guias como uma das melhores experiências de viagem da Sudamérica. Para nossa mágoa, ainda näo é desta que podemos correr um continente de jipe (aguardem um eventual "África Tour'2030"), pelo que nos resignámos - como em toda esta trip - a seguir os caprichos dos buses.

A saída de Torres del Paine por Puerto Natales, ainda no Chile, seguiu a rotina habitual na Patagónia de "entra no autocarro, sai do Chile, entra na Argentina, sai do autocarro" (ou vice-versa). Ainda antes de chegarmos a El Calafate já entráramos na poeirenta Ruta 40, quase toda em "macadame", ou estradäo, ainda que asfaltada nas zonas mais "comerciais", como aqui.

El Calafate, que encontrámos em solarenga hora de almoço, podia pereitamente chamar-se "Le Calfateur" e ser uma estância de ski nos Alpes franceses ou suiços. Simpática, de ritmo leve, turística mas de um comercial que näo sufoca quem vagueia pelas ruas. Estávamos lá para o Perito Moreno, um dos maiores glaciares do Mundo, um tour de "homem branco". Exigia levantar cedo, apanhar o autocarro no meio de japoneses, sul e norte-americanos de meia idade e voltar à tarde para almoçar num dos restaurantes da rua principal de Calafate, fazendo de seguida umas compras de material de montanha ou de campismo. Foi basicamente o que fizemos, com a excepçäo de que fomos de directa (apesar de termos pago lugar no camping). A noite passámo-la surpreendentemente com uns franceses que falavam inglês, em casa do Emiliano, um empregado de mesa argentino no restaurante onde jantáramos o mais delicioso que famoso Cordero Asado da Patagónia, regado por uma garrafa de Malbec (casta argentina) da casa Lopez. Noite surreal, com os franceses a tocar Pearl Jam e Metallica na guitarra, a pedidos do Bessa, enquanto eu olhava, sorrindo por dentro, pensando que viajar era isto mesmo.

Visto o Perito Moreno, que depois do que custara apreciar o Grey por cima, achámos demasiado fácil, muito "à mäo". Lá está, saboreia-se melhor a vida quando ela exige um pouco mais de esforço. Ou talvez a directa em cima näo nos permitiu apreender o Perito Moreno como espectáculo natural que é. A verdade é que parece sempre melhor nas fotografias. Lá acabámos, qual fado do turista na Patagónia argentina, sentados a beber uma cerveja nas esplanadas de Calafate, depois de um passeio pelas tiendas de camping.

El Chaltén, 200kms a Norte num desvio da RN 40, näo poderíamos, por sua vez, encontrar em mais canto nenhum do planeta. Sem estrada alcatroada, em pleno Parque Nacional dos Glaciares, é considerada área protegida, ainda que de beleza estonteante nada tenha. O que tem de especial é ser o inóspito ponto de partida para vários dos melhores hikings da Sudamérica. E por esta altura, como se conseguirá ler, já nos considerávamos hikers de nascença.

A noite cerrada de El Chaltén, com chuva e vento, deixou-nos à deriva na busca do parque de campismo gratuito. Acabámos clandestinos num camping com todas as condiçöes que no dia seguinte nos "esqueceríamos" de pagar. Montar a tenda com aquele clima, cheios de frio e sono, foi mais um desafio superado. Maiores do mundo na nossa cabeça, já nos imaginávamos guias de montanha em qualquer parte do globo.

É um pueblo mais pequeno e mais rústico (leia-se também "roots") do que Calafate, ainda que com muitos turistas e estabelecimentos de todos os tipos para ele virados. Mas pode mesmo chamar-se comercial a um sítio sem iluminaçäo pública em quase todas as ruas, sem um metro de alcaträo nas estradas, sem passeios ou bermas, só lama e estepe patagónica à volta, rodeado de montanhas nuas e escarpadas, onde no Veräo chove e chove, e no Inverno neva e neva?

Pelo tempo que necessitávamos poupar, terminámos com apenas um dia de trilhas e decidimo-nos pela mais difícil, a que levava ao sopé do Fitz Roy, montanha de escalada das mais técnicas, outro "postal" da Argentina patagónica. De mochila leve, näo custou mais do que já izéramos (maiores do Mundo), até decidirmos arriscar a última parte, que estava supostamente cortada. 700 metros de rocha, entre os blocos grandes que se sobem com apoio das mäos, e as pedras soltas e húmidas que ameaçam escorregar a cada paso que se dá. Mais chuva e mais vento. O Bessa a trilhar caminho mais à frente. Eu atrás, deixando lagos, ribeiros e florestas para buscar uma montanha coberta de névoa, amaldiçando entredentes esta nova paixäo pela Natureza. Eu a descobrir que viajar é aproveitar cada passo que se dá por que pode valer a pena, quando chego finalmente ao ponto mais alto. Uma pequena laguna, a Laguna de Los Tres (três cerros), de água azul escura por näo ter céu para reflectir. Vento e neve, arrastada das encostas do Fitz Roy que, como os Cuernos de Paine, se permite mostrar-nos uma nesga, para recompensar-nos pelo esforço. Neve no Veräo? Subir só por subir? Poder dizer que lá estive e que fui capaz? Ou só acordar sobressaltado em Lisboa, daqui a uns meses, com saudades daquela fria solidäo na Laguna de Los Tres, onde nesse dia näo teräo subido mais de dez pessoas?

Ainda tínhamos quase toda a Ruta 40 pela frente quando nessa noite, dia 12, nos fizemos à estrada. Só precisávamos de fazer pouco menos de metade dessa RN (Ruta Nacional) para o nosso destino, ocupando duas noites de viagem, o que näo dava para viver a sério o estradäo e a estepe. Foram 1500 kms em 30 horas em que talvez o que custou mais foi näo poder fazer o caminho ao nosso ritmo, desviando para aquele pueblo quando nos desse na telha, fazendo foras de estrada quando parecesse apetecível (estepe ou macadame näo variam assim tanto), dormindo no meio do nada. Dormir no meio do nada até dormimos. A vida de "buseros" é assim, levados por motoristas com ordens e horários, com ventilaçöes para ligar no máximo de calor à noite e filmes dobrados em castelhano para passar. Os condutores deste ainda seriam dos mais originais, extrovertidos (palhaços?), metendo-se constantemente com três inglesas esfomeadas. "Gordas, paren de comer!", poderia dar um toque de telemóvel täo bom como "Por qué no te callas?".

A nossa RN 40 näo foi a de Che quando ainda näo era Che. Foi a do Manel e do Bessa e dessas bifas "gordas" e desses "palhaços", e de outros turistas e de outras pessoas, e de estrada e estrada sem fim, que se deixaram levar para Norte naqueles dias de 12 para 14 de Janeiro. Se somos quem éramos é profundo, e lírico, demais para testar aqui. Fizemos a Ruta 40, fizemos. De noite, céu escuro sem luz. De dia, vegetaçäo rasteira e apenas adivinhando os Andes, paralelos mas longíquos. De noite, sonhando atravessar todos os climas e tipos de vida. E quando acordámos estávamos em San Carlos de Bariloche, Argentina.

Sugando o tutano da vida

Preferes esta vida de campo e montanhas, dormir numa tenda e cheirar mal, ou a vida da cidade, de bifes e vinho, roupa arranjada, perfumes e discotecas, como em Buenos Aires?


Por muito que tente näo sei dizer ao certo. Sempre tive um fascínio enorme pela natureza, mar, montanhas, ar livre, deserto, tudo. Só que uma coisa säo as imagens que criamos na nossa cabeça desde pequenos, pelas fotografias que vemos e os passeios e aventuras que vamos tendo. Entrar de cabeça na vida de ar livre só aos 10 anos, quando comecei a fazer campos de férias. E mesmo aí a experiência era diferente e aquilo que retirávamos e nos marcava era muito mais o contacto com outras pessoas do que com a Natureza.

Entäo, porquê decidir por a mochila às costas e ir ver o que escondem as florestas e os lagos, a chuva e o vento, a montanha e as trilhas de Torres del Paine?

[4 a 8 de Janeiro de 2008]





DIA 1 - 4 de Janeiro de 2008
Laguna Amarga - Camping Serón (10 kms)

O peso da mochila, em que carrego a comida para os nossos cinco dias, e a falta de ritmo das pernas e dos pés fazem com que a primeira hora seja dolorosa. Näo ando, näo faço trekking ou hiking; arrasto-me. Os gémeos e os músculos da canela pesam-me e o Bessa já segue disparado, uns 20 metros à minha frente. Pouco a pouco, deixo o ambiente envolver-me e começo a esquecer as dores. O contraste na vegetaçäo demonstra bem o que passa comigo; ao seco e queimado dos restos de árvores em cinza do incêndio de 2005 opöe-se a nova relva, verde forte, e os malmequeres e margaridas que däo cor ao caminho.

Decidíramos, já na entrada do Parque, fazer a parte näo turística, näo comercial. Em vez de fazer o W, a parte Sul, iríamos começar pelo Norte, pela parte de trás do Circuito completo. Sabíamos que era mais comprida, mais exigente, mas pelas informaçöes que tínhamos recolhido era mais Natureza e menos pessoas.

Na verdade só nos cruzamos com um casal que termina o Circuito por onde nós começamos. O resto, como os dois casais de argentinos e canadianos, que saem connosco, näo chega para fazer um grupo de mais de 40 pessoas. Entre eles está um grupo de letöes com um autêntico batalhäo de guias, antipáticos por acaso (à excepçäo de um que parece o irmäo da Goinha). Mais uma vez, devemos ser os mais novos. Somos também os que têm as mochilas mais pequenas. As grandes ficaram em Puerto Natales. As pequenas estäo atulhadas - a do Bessa com roupa, coisas de higiene e a cozinha que alugáramos, com panela, frigideira, pratos, talheres e, claro, bico de fogäo e garrafa de gás pequenos; a minha com os mantimentos (arroz, massa, salsichas, atum, maionese, linguiças, papas de aveia para o pequeno-almoço, bolachas, chocolates, entre outras tralhas). A tenda leva-a ele que tem a mochila mais leve.

Chegamos ao acampamento no tempo estimado pelo mapa que nos deram ao entrar no Parque Nacional, quatro horas e meia. Estamos cansados mas isto ainda näo é nada. Já há muitas tendas montadas e nós, com desembaraço, pomos a nossa de pé. Estamos cheios de confiança nas nossas capacidades para lidar com a montanha, inspirados pelo vento que corre e pela água que corre no rio por trás do camping. Fazemos o nosso primeiro jantar - uma feijoada enlatada com arroz e linguiça, depois de um creme de frango. Na mesma caneca bebemos um chá com pisco para aquecer.

Pouco depois, ainda no lusco fusco (apesar de serem onze da noite) já nos estávamos a deitar. Nessa primeira noite havia de acordar muitas vezes a meio da noite, procurando furiosamente a lanterna para verificar se o duplo tecto näo tinha voado. O vento uivava, abaulando a estrutura da tenda até ela ficar de lado. O Bessa dormia e ressonava alegremente ao meu lado (haveria de me jurar que se fartou de acordar e que quando o fazia quem dormia era eu). Lá resistiu, rija, pronta para mais. E nós a termos de nos habituar que näo estávamos ali para ser fácil.


DIA 2 - 5 de Janeiro de 2008
Camping Serón - Refugio Dickson (19 kms)


Acordamos resignados com a noite mal dormida mas pouco preparados para o pequeno-almoço de papas de aveia em água fria. Como no dia antes, os músculos das pernas respondem mal aos primeiros quilómetros, ainda para mais por uma subida a pique, em montanha sem vegetaçäo. Torrando ao sol, lá a ultrapassámos para fazer o resto do troço sempre junto a um lago, azul claro, com as montanhas nevadas por trás.

Os 19 kms säo mais duros do que pensávamos, com subidas e descidas frequentes, acabando com um trilha em pântano. Ao avistarmos o Refugio Dickson, do alto de uma montanha, sereno com as cabanas de madeira numa orla de relva protegida do frio do lago por um bosquezinho, ficou claro que näo passaríamos dali. A última descida para o Refugio confirmou a ideia, sendo um slide gigante em pedra solta, a derrapar de dois em dois metros.

Montada a tenda, mais estável que na noite anterior, decidimos por o fato de banho (que, com o canivete, é um objecto indispensável em qualquer viagem, seja para o deserto, ou a um dos Pólos) e arriscar um mergulho no lago. Foi bom para a circulaçäo, mergulhar em água a menos de 10 graus, mas tirando o orgulho e a prova de virilidade, näo se pode dizer que tenha sido uma experiência agradável.

Nessa noite, outra vez a tenda é posta à prova, por chuva que näo parou de cair. Voltamos a ter sonos intermitentes e desencontrados; mesmo assim muito mais tranquilos com a estabilidade da nossa barraca.


DIA 3 - 6 de Janeiro de 2008
Refugio Dickson - Camping Los Perros (9 kms)


O cansaço, apesar de uma tarde inteira de descanso, cai sobre os nossos ombros e deixa-nos mal dispostos. Guardamos a vontade de praguejar para cada um de nós, näo vá afectar a moral dos dois.

Os primeiros trinta minutos, de subida inclinada, deixam-nos ainda pior. Animamo-nos por saber que somos dos primeiros a sair do acampamento e que estamos a andar ao ritmo dos guias. Um deles, míudo argentino de nombre Ricardo, ajuda-nos a dar mais uma machadada no nosso plano. Deveríamos chegar nessa tarde ao Campamento El Paso, passando a parte mais difícil de todo o Parque - o Paso John Gardner - ao fim da tarde. O Ricardo diz-nos que ninguém fica nesse nem no seguinte - o Los Guardas - porque "no pasa nada". Decidimos segui-lo e ficar no Camping Los Perros. Foi assim que ficámos a conhecer a noçäo de tempo na América do Sul, já que a certa altura começa a dar pontos de referência e a assegurar que só faltariam 40 minutos e depois 10, "después del puente". Obviamente, andámos mais duas horas e meia.

O céu, cinzento e frio, muito pouco acolhedor, näo permitia sequer adivinhar a hora quando chegámos ao último marco antes do Camping - o Glaciar Los Perros, o nosso primeiro contacto com um glaciar. Sem ser especialmente grande, ou bonito, com uma laguna de água suja de terra por baixo, impressiona-nos pela solidäo congelada a que a sorte, a evoluçäo da Terra, Deus, algo lhe destinou. Um barulho ensurdecedor, de origem desconhecida, quebra o silêncio de tempos a tempos, sem ser possível identificar a sua origem. O glaciar, que ruge por dentro? O vento, a uivar nas fissuras do gelo? Um aviäo por cima das nuvens, que näo se vê? A nossa imaginaçäo?

Refeitos do impacto do azul gélido do Glaciar ultrapassámos os últimos obstáculos, montanhas de pedra que nos obrigam a dar passos lentos, mas seguros, para näo resvalar. No fim de uma, contornada junto ao rio, que corre fresco e forte, encontramos o pinhal onde o Ricardo já montava a tenda e descarregava a mochila, cheia de comida para os turistas. Trinta quilos para um casal de americanos, hikers habituais, que faziam o que nós trilhávamos ao dobro da velocidade.

Chegados à hora de almoço temos tempo para tudo. Montar a tenda, tomar banho - só o Bessa é que tomou, seguindo a ambiçäo de ser eleito Miss Torres del Paine, eu fiquei-me por lavar o cabelo, já cheio de terra e pastoso - comer qualquer coisa leve, com uma Coca-Cola comprada no Camping, secar roupa, dormir uma sesta. E acordar e jantar, o mais caprichado possível; arroz de atum com molho de tomate e ervilhas oferecidas por uma família sudamericana, pais e dois filhos, que fazia o mesmo caminho que nós, acompanhadas de uma lata de sardinhas ensopadas em tomate.

Já atacados por mosquitos ainda tivemos que dar uma volta para näo deixar o nosso pitéu atolado no estomago durante a noite. Lá nos resignámos a ir dormir, no chäo húmido, sem encontrar posiçäo. Ao menos, protegidos pelos pinheiros altos, näo tivemos chuva e vento que nos perturbassem a noite antes daquele que viria a ser o dia mais cansativo e, por isso mesmo mais libertador, da nossa viagem.


Dia 4 - 7 de Janeiro de 2008
Camping Los Perros - Lago Pehué (33 kms)


Para estarmos de saída às 7.40h da manhä, implica que nos levantámos, mais hesitaçäo menos hesitaçäo, uma hora antes. Foi o início do sofrimento. Sobre-agasalhados, ainda meio dormidos, pouco reconfortados pelo nosso pequeno-almoço de papas de aveia, passou por nós o tal casal de americanos que viria a confessar-nos que quando nos viu de manhä näo acreditou que conseguíssemos chegar ao fim do dia.

De calças ensopadas até aos joelhos, os sapatos num chlap-chlap constante da água que acumulavam, fizemos os primeiros quilómetros em subida de lama, o Bessa nos seus 50 metros habituais à minha frente. A certa altura, já sem os casacos, suplicávamos por outro tipo de trilha quando a floresta desapareceu e mostrou-nos enfim o que tínhamos de mais duro pela frente. Montanhas inclinadas de rocha solta, com bocados de neve e ribeiros a escorrer. A cada 50 metros, bandeiras cor-de-laranja indicavam o caminho, deixando total liberdade a cada pessoa para escolher a sua rota entre elas. De Ipod ligado, a música puxando por nós, seguimos separados, sozinhos, sem trocar palavra. O céu näo dava tréguas e o vento trazia até nós chuva, curta mas cortante na cara. Resistíamos bem, devagar, olhando sempre para cima em busca de um fim que parecia näo chegar.

No último assalto à montanha ouço gritar lá de cima, "Libertei-me". Libertávamo-nos a cada passo, ultrapassando aquilo que julgávamos ser os nossos limites, bebendo água das fontes que brutavam puras entre as rochas, olhando sempre para cima com um sorriso na cara. Cantávamos a plenos pulmöes, ou naquilo que os pulmöes permitiam, e seguíamos.

A chegada ao Paso John Gardner em si é daqueles defining moments, que os estadounidenses tanto buscam na vida. A imagem das montanhas com neve no topo bordejando lagos e florestas, terminando num monte rochoso, por trás das nossas costas, com o Glaciar Grey visto de cima, gigante, branco com laivos de azul, frio, impassível perante o tempo e os pequenos Homens como nós que se sentem realizados por ali estar. Näo somos nada, ao lado daquele bocado da História da Terra, apesar de nos sentirmos os maiores dos descobridores, aventureiros de sangue.

Daí foi uma caminhada, leia-se escorregadela, pela mata enlameada com o Grey em vista por entre as árvores até ao Campamento El Paso. Almocinho regado a Speed Zone, o Red Bull marca branca que conseguíramos encontrar, que nos deu asas para fazer dois troços de seguida até ao Campamento Grey em passo mais rápido que os mapas e os guias. Tomada a Coca-Cola da vitória separamo-nos das pessoas com quem trilhámos a parte de trás do El Circuito, guias, casais, famílias, e seguimos para o Lago Pehué.

O corpo, revoltado com todo o esforço acumulado, começa a dar de si e sofremos bem, algo desnorteados em relaçäo ao mapa, sem ribeiros de onde recolher água. A certa altura, numa das últimas subidas, tivemos de recorrer ao chocolate de reserva para abafar quebras de tensäo.

Lá chegámos, exaustos, com direito a mais uma Coca-Cola e sopa de marisco de pacote. Acabámos a comer na tenda, com o vento a ameaçar derrubar a tenda, que se revelou rija, mais uma vez e sem surpresas.


Dia 5 - 8 de Janeiro de 2008
Lago Pehué - Campamento Italiano - Lago Pehué (30 kms)


Acordar tarde e comer tarde, deixando todos os mantimentos na cozinha do Camping para ficar de mochila leve. Decidimos dar mais um esticäo às pernas e aos músculos só pelo prazer de andar. Um prazer que já näo o era assim tanto, ao fim de 5 dias disto. O céu encoberto e a chuva miudinha parecia dizer-nos para que ficássemos onde estávamos, ao que respondemos com 15kms para lá e outros tantos de volta para ir ver o ex-libris do Parque - Los Cuernos, montanhas em bico, de basalto e granito que rasgam o azul do céu. Pelo menos nas fotografias.

Nesse dia os Cuernos näo nos perdoaram o facto de termos decidido andar fugidos o tempo todo, perdidos atrás de outras montanhas, e mantiveram-se cerrados pelo nevoeiro. Abriram, em jeito de piscar de olho - "vejam o que perderam!" - a seguir ao almoço, quando regressávamos ao turquesa do Lago Pehué. A tempo de tirar umas fotografias de despedida. Apesar do corpo preso, a alma pedia-nos para ficar mais tempo. Tínhamos ainda muito para trilhar, muita paisagem para surpreender, tanta Natureza para nos libertar dos vícios de meninos da cidade.


Epílogo

Presos pela curta duraçäo da viagem, tivemos de apanhar o barco, cheio e caro, que nos permitiu poupar um dia de caminhada. Os últimos momentos que levamos de Torres del Paine säo os do conforto, no bar do Camping, a tomar uma Kuntsmann, "a melhor cerveja a sul do México" segundo o Lonely Planet.

Do barco para o autocarro, chegados a Puerto Natales já a noite nos exigia sopas e descanso. Que encontrámos no Mwono, unanimemente considerado (somos só dois, também) o melhor hostel que encontrámos na Sudamérica. Quente, acolhedor, barato, com casas de banho asseadas (finalmente um banho!), um dono impecável e pequeno-almoço à janela, servido quando quisessemos. Os luxos que sentíamos como merecidos e que, mesmo que näo fossem melhores do que encontrámos em toda a nossa vida, saboreávamos como se nunca tivéssemos vivido em civilizaçäo, como se tudo fosse novo e óptimo. Como se a vida fosse óptima e estivesse à nossa espera para que a pudéssemos gozar ao máximo.


A verdade é que sem conheceres os dois, nunca saberás apreciar verdadeiramente nenhum deles.



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*"Sugar o tutano da vida" faz parte de uma das citaçöes mais fortes de Henry D. Thoreau que serve de descriçäo ao blog de viagens e surf Tempo de Viajar.

27.1.08

Ao fim de näo sei quantos quilómetros

Uma pessoa perde-se e deixa coisas para trás.

Nesta viagem, mal menor para mim, tem sido só escrever no blog. De resto tenho tudo comigo, nomeadamente os Big Five - Passaporte, carteira, máquina fotográfica, Ipod e telemóvel.

Estamos em Copacabana, a da Bolívia, e dentro de umas horas em La Paz. Mais notícias e estórias atrasadas ficam para a capital.

Até logo.

16.1.08

Sinal de vida

[Bariloche, Argentina]

Só para dizer que sigo vivo, bem vivo e bem vivido, nesta Sudamérica.

O hostel surreal em que estou e o tempo de viagens de autocarro impede-me de escrever muito, mas no meu Moleskine tenho três posts na ponta da folha, mais um de fotografias.

Estamos de saída, de vez, da Argentina, mais um país que se fecha. E daqui vamos para Santiago - de regresso a Casa! - onde poderei por aqui tudo o que está em falta.

Vemo-nos daqui a muitos quilómetros, num sítio que já conhecemos.

9.1.08

O Mundo está ao contrário

Sentido de humor apurado ou a necessidade de nos agarramos a este Mundo?

O hostel em que ficámos em Ushuaia, depois de uma nega e de algumas voltas pelo traçado rectangular da cidade, chama-se Yakush. O nome, da língua nativa da Tierra del Fuego, já ninguém sabe o que quer dizer. Lá dentro, nas paredes coloridas, lê-se, entre outras frases "el fin es el princípio" e "el mundo está al revés". Paradigmático, o globo terrestre na recepçäo foi alterado para que o hemisfério sul esteja na parte de cima.

Ostenta-se orgulhosamente o título de cidade mais a sul do Mundo. Ou simplesmente O Fim do Mundo.

O ambiente na rua é de vilazinha nas montanhas, uma estância de ski. As pessoas estäo encasacadas e chamar Veräo a isto só pode ser uma piada. Para cenário de Alpes ou Pirinéus falta, contudo, a neve atirada pelo chäo e a marca de óculos no bronzeado da cara. A atmosfera é de aventura. Afinal, a Antártida está aqui a dois passos (e uns milhares de dólares), e tanto na Tierra del Fuego como na Isla Navarino (a sul, território chileno), têm muito para descobrir.

Nós fizemos a nossa parte, com um trekking de três horas no último dia do ano, no Parque Nacional da Tierra del Fuego, por entre lagos e florestas, com montanhas cobertas de neve no topo. Um aperitivo para Torres del Paine. Esticamos as pernas, calibra-se as máquinas fotográficas (especialmente a reflex do meu escudeiro Bessa), começamos a viver a Natureza e a tentar libertar-nos do ar condicionado e pegajoso das 50 horas em autocarro que nos trouxe até aqui.

No hostel, e em geral, somos dos mais novos. Somos os mochileros pendejos ["pendejo" é caläo castelhano com vários sentidos, entre eles o mais suave é "putos com a mania que sao espertos"], segundo o dono do hostel, e fugimos ao mercado que ele procura para o Yakush. A verdade é que somos dos mais animados, conseguindo mesmo descontrair a responsável pelo hostel na noite de Fim de Ano e fazer com que viesse sair com todos. O Fim do Ano no Fim do Mundo foi uma festa da globalizaçäo, tendo dito Feliz Ano Novo em várias línguas, desde o português de Portugal e do Brasil ao croata, passando pelos óbvios inglês, castelhano, francês, italiano, entre outros. Buon Anno! Feliz Año Nuevo! Bon Année! Happy New Year!

Uma equipa no nosso hostel realiza um documentário para uma televisäo croata. Nas ruas toca-se e faz-se barulho. Os hostels convertem-se em discotecas. Os paquetes ancorados no porto, cheios de americanos, buzinam para o ar. É festa como em outro lado qualquer, mas aqui as pessoas parecem agarrar-se mais à necessidade de festejar. Como precisam de se agarrar à Terra, já que estamos täo a sul que estamos de pernas para o ar. Ou entäo, estamos täo seguros que mais parece que estamos nós no topo do Mundo. Já näo éramos portugueses, de tanto falar e festejar noutras línguas. Fazíamos parte de uma massa enorme, de uma força imparável que anima os mais intrépidos e audazes a romper barreiras e a fazer-se à estrada por esse mundo fora. Como no globo do Yakush, o Mundo estava ao contrário. E nós estávamos lá em cima, felizes, quase (!) desligados dos milhares de quilómetros que nos separam daquilo a que até há pouco tempo nos habituámos a chamar de casa.

Muita montanha depois

Cinco dias de caminhada, cerca de 80 kms.

Ninguém disse que ia ser fácil, nem divertido, mas é este tipo de coisas que nos faz sentir vivos.

De volta à civilizacäo, em Puerto Natales, com um dia de descanso antes de voltar a entrar na Argentina. Tempo para esticar os músculos, por o sono em dia, rever as contas bancárias (que susto!) actualizar o blog e ver como páram as modas na Patagónia chilena.

Ainda que haja muito para escrever, é impossível näo me sentir inspirado pelo corpo dorido que trago comigo, pelo céu azul à minha frente e pelo ar fresco e limpo fora do cyber-café.

3.1.08

Radio silence

Incontactavel durante os proximos cinco dias.

Se quiserem saber por onde ando, e o que ando a fazer, vao ao Google e escrevam Torres del Paine.

Depois conto como foi.

Over and out.

1.1.08

Na Terra de Ninguém

Ou Como chegar ao Fim do Mundo.

Näo é qualquer pessoa que vai à Tierra del Fuego. Daí a cumplicidade que se gera entre as pessoas que partilham o autocarro de Rio Gallegos para Rio Grande e, depois, para Ushuaia.

A nossa entrada no bus, tardia mas com estilo, é muito saudado e o espírito entre todas as pessoas é muito bom. Toda a gente mete conversa com toda a gente. "Son de Portugal? Yo tengo un apellido portugués - Pereira"; "Adonde va usted?". Oferece-se e reparte-se comida, ensina-se coisas sobre a Patagónia e a Tierra del Fuego.

O mais curioso é estas terras estarem divididas entre Chile e Argentina. Por quatro vezes passámos em Aduanas. Sai da Argentina. Entra no Chile. Sai do Chile. Entra na Argentina. Pelo meio viajamos por terras de ninguém, por terras disputadas e por algumas ainda defendidas por minas antipessoais. E cruzámos o Estreito de Magalhäes, num dia calmo, entrando assim na maior ilha da Sudamérico, baptizada por Magalhäes [traidor ao serviço de Espanha, segundo o meu Sancho Pança] ao ver as fogueiras dos nativos por trás das montanhas.

Aqui, picardias sobre petróleo, gás natural e pastos férteis à parte, sente-se a tal magia. No olhar íntimo das pessoas, nas paisagens, nos ventos polares que nos atacam sem piedade. Estamos a Sul. Estamos, Antártida à parte, no ponto mais a Sul do Mundo. Só o conceito é estranho o suficiente para por a cabeça a andar à roda e os pulmöes a respirar mais devagar. A realidade, meus amigos, a realidade do que se vê e se sente é indescritível.

Venham cá abaixo ver isto.

Na Terra do Nada

Ou Onde é que nós estamos?.

Rio Gallegos, 36 horas depois de Buenos Aires. Nem nós sabemos bem onde é que isto fica, quanto mais as nossas famílias.

[para que se saiba, Rio Gallegos fica no Sul da Patagónia Argentina, junto à costa, e é a porta de saída para a Tierra del Fuego]

Comparado com Buenos Aires, esta pequena cidade tem de facto muito pouco e nada que se acrescente a esta viagem. Já o Lonely Planet avisava. Junto do terminal rodoviário, um camping onde estreamos a tenda comprada à saída de Buenos (mostrámos que ainda temos sangue campinaciano a correr em nós. tal a rapidez com que montámos e desmontámos a tenda); no centro, restaurantes onde comemos bem e barato e ciber-café onde passámos horas na Internet e a jogar Playstation, depois de uma frustrada visita a um museu. [e aquele palerma que jogava Playstation sozinho com a namorada sentada ao lado a ver?!]

Nem aquilo que parecia que nos ia ser "oferecido" por Rio Gallegos, os 120 pesos que ganhámos no casino, acabou nosso, mas de um taxista da cidade.

É que, depois de uma alvorada antes das sete da manhä para apanhar o autocarro das 8.30h, o nosso fado de "maus apanhadores de transportes", encontrou-nos neste cantinho escondido do Mundo. Estávamos no terminal às 8.04h, mas isso näo chegou, porque a hora tinha mudado (adiantado) na noite antes.

Em sintonia, o Huckleberry Finn e o Tom Sawyer (leia-se, Bessa e Manel) decidem apanhar um táxi. A nós junta-se um americano (estado-unidense) professor de inglês que vai ter com os pais (a fazerem um cruzeiro) a Ushuaia. Nem meia hora depois alcançávamos o autocarro, ainda antes da fronteira, fazendo o taxista festejar ainda mais do que nós. Lá o deixámos, 170 pesos mais rico, feliz por si e por nós, enquanto que eu, subindo para o bus, decidia que nada acontece por acaso.

29.12.07

Na Terra do Tudo

Ou Feliz Navidad em Buenos Aires.

É difícil escolher uma característica apenas que nos atraia na capital argentina. Ou säo as avenidas, enormes e rasgadas, ou os edifícios e monumentos, grandiosos como em Paris, ou o movimento, sem parar as 24 horas como em New York, o glamour, a beleza das mulheres, a quantidade de jardins, como em Amesterdäo, as noitadas até de manhä, a carne, jugosa como em lado nenhum e ao preço da chuva, o espírito entre as pessoas do hostel, ou o ambiente entre portugueses.

Já chega. Buenos Aires encanta e encantou, prendendo desde o primeiro sopro quem entra. É, por isto mesmo, complicado para mim falar dela sem pôr a questäo "Porque escolhi Santiago, Chile, e näo Buenos Aires, Argentina?". Agora que estou longe de ambas mantenho a opiniäo que tinha quando optei por Santiago - Buenos Aires é muito mais bonita e agitada, mas o Chile atrai-me mais. E depois do que vivi este semestre, e pelos amigos que fiz, tenho a certeza que fiz uma grande escolha.

Na capital porteña, por entre passeios de bicicleta (longos, que a cidade é enorme), jantares de parrillada regados a vinhos Malbec (casta argentina), visitas a La Boca, bairro do futebol e do tango, siestas ao sol nos jardins, ou a partilha de estórias, viagens, cervejas e cigarros com os hostelmates de todas as nacionalidades, demos por nós a passar o Natal em Buenos Aires.

O espírito natalício era curto, longe do quentinho aconchegante da família, e com outro calor, o do Veräo, rompendo todo o nosso imaginário de Natal, com frio e neve (neve?). Whatever. Além disso, fugindo à ceia no hostel para um jantar tuga, só encontrámos restaurantes caros abertos. Ao fim de duas horas de vagueio e quase desespero, acabámos, ao engano, num sítio com muito bom aspecto, preços nada caros e lugar para todos. Ao engano, porque afinal tinha mesmo menu turístico para a ceia da nochebuena. Negociado, lá baixou de 200 para 100 pesos argentinos e, com mais umas garrafas de vinho (e uma de oferta), acabou a 130 por pessoa (menos de 30€). Numa jantarada que em Portugal seria o triplo do preço. Muito agradável, muito agradável.

Passámos a noite no hostel, em grande fiesta navideña, onde fizemos uma troca de presentes entre portugueses. Apesar de a alguns deles só os conhecer há pouco tempo, foi óptimo descobrir que os presentes para o amigo secreto respectivo foram escolhidos com imensa intençäo. É o bom de viajar com pessoas que näo se conhece (ou mesmo com as que se conhece há muito tempo) - rapidamente nos conhecemos e nos aproximamos, unidos em torno do que nos une, sobretudo o mais forte, viajar por esta Sudamérica.

O último dia inteiro em Buenos Aires foi, apesar de tudo, um martírio. A caminho de entregar as bicicletas furei um pneu. Fiquei sozinho a tratar de tudo - enche pneu, näo enche que está pinchado; tenta enfiar a bici num táxi, näo dá porque näo deixam ou näo cabe; tenta reparar, näo querem reparar. Lá pöem um parche, um remendo, um bocado contrariados. Obrigado, volta a rebentar quando já estava quase no fim do caminho. Mais 10 minutos a levar a bicicleta à mäo. No dia em que mais se quer aproveitar, menos se faz. É esta a última impressäo que fica da cidade?

Näo, que ainda tivemos uma última noite no hostel. Marca-se encontros (impossíveis?) em Ushuaia, em Bariloche, na Europa; aprende-se mais sobre viajar e viver. E, presente de Natal, duas amigas do Chile fazen um esforço e vêm ao hostel despedir-se mesmo quando o Bessa e eu, já sozinhos, nos preparávmos para sair de Buenos Aires. Gracias Mica e Britta, vemo-nos por essa Europa.

No terminal rodoviário, a fechar, Buenos Aires mostra-nos mais e ensina-nos a abrir a pestana para estas viagens. Primeiro, o velho do truque do "tienes horas", enquanto tentam surripiar a mochila. A pergunta, repetida mesmo olhando para o relógio que eu lhe mostrava, fez alguma coisa abanar dentro de mim e olhar para as nossas tralhas. O cúmplice de t-shirt azul sacava a mochila pequena do Bessa por trás das costas dele. Sem conseguir emitir um som, corro para ele, que já tenta fugir. Vendo-se apanhado, larga a mochila e foge. O Bessa, abananado, tenta correr atrás do das horas, que se mistura na multidäo e desaparece. Mas a mochila ficou. A fechar, o nosso autocarro das 21.30h era afinal às 21.05h, hora a que resolvi consultar o painel das saídas e descobrir o meu engano. Um bilhete täo difícil de arranjar (fomos os últimos dois a comprar) e ia deitando-o ao lixo com esta brincadeira. Até porque o Bessa e eu somos pródigos em perder transportes (para quem sabe, Bratislava!). Fica a liçäo de Buenos Aires - abrir os olhos, para as mochilas e para os bilhetes.

Foi longo o tempo que ficámos em Buenos Aires, 5 dias numa viagem de 2 meses. Mas näo podia ter sido menos. Cidade "ampla, verde e enóloga" (Bessa dixit), agarrou-nos desde o princípio, mostrou-nos o ritmo entre o tranquilo e o louco dos hostels, e deixou-nos com a necessidade, mais que vontade, de voltar lá.

25.12.07

Eles andem aí...

...e voem.

Rumo a Sul.

De Punta a ponta

Corre.

O vento, a off-season de Punta del Este, a ausência de movimento (quase), a saída da Península.

Corre.

Por outro lado, o sol e calor, a alegria, o hostel colorido, os preços, a tranquilidade.

Corre.

Desde Punta del Este, na parte Este (qual outra?) do Uruguai, até Colónia de Sacramento, em pleno Rio del Plata, virado para Buenos Aires.

Corre.

A Miami da Sudamérica e a fortificaçäo portuguesa que permitia o tráfico para Buenos Aires, de acordo com os interesses portugueses dos séculos XVIII-XIX.

Corre.

O dinheiro esticado ao máximo e a necessidad de sacar dinero de un cajero.

Corre.

O caminho da Rodoviaria até ao HSBC foram cinco minutos de corrida, quando percebes que já näo corres há meses. "Corre", diz a voz dentro de ti. É preciso apanhar o bus para Montevideu e depois para Colónia. E à medida que os teus amigos te esperam na Rodoviaria e tu excedes os limites físicos presentes vais esgotando os últimos segundos de Punta, que te fazem notar a definiçäo de Punta del Este sem movimento - poucas pessoas, pouca agitaçäo, mas um sol e mar incríveis, quase perfeitos, fosse ao por ou ao nascer do Sol.

Corre.

A verdade é que já estou em Buenos Aires. Apanhei aquele bus?