7 Meses na América do Sul

A PUC de Santiago, o Direito chileno, o pisco e as empanadas, os Andes, o Pacífico, a Sudamérica, Rapa-Nui ... enfim, La Libertad.


5.2.08

RN 40, Argentina

[10 a 14 de Janeiro de 2008]

A Ruta Nacional 40 desperta naqueles que conhecem a Sudamérica, e a Argentina em especial, os mesmos sentimentos que a Route 66 cria por quem ambiciona aventura ou apenas conhece um pouco de cinema e de cultura norte-americana. Acompanhando em paralelo La Cordillera, percorre todos os tipos de clima e vidas desde a fronteira Norte com o Chile até ao Sul patagónico.

Percorrida por Ernesto Guevara de motocicleta nos já nebulosos anos 50, é recomendada pelos guias como uma das melhores experiências de viagem da Sudamérica. Para nossa mágoa, ainda näo é desta que podemos correr um continente de jipe (aguardem um eventual "África Tour'2030"), pelo que nos resignámos - como em toda esta trip - a seguir os caprichos dos buses.

A saída de Torres del Paine por Puerto Natales, ainda no Chile, seguiu a rotina habitual na Patagónia de "entra no autocarro, sai do Chile, entra na Argentina, sai do autocarro" (ou vice-versa). Ainda antes de chegarmos a El Calafate já entráramos na poeirenta Ruta 40, quase toda em "macadame", ou estradäo, ainda que asfaltada nas zonas mais "comerciais", como aqui.

El Calafate, que encontrámos em solarenga hora de almoço, podia pereitamente chamar-se "Le Calfateur" e ser uma estância de ski nos Alpes franceses ou suiços. Simpática, de ritmo leve, turística mas de um comercial que näo sufoca quem vagueia pelas ruas. Estávamos lá para o Perito Moreno, um dos maiores glaciares do Mundo, um tour de "homem branco". Exigia levantar cedo, apanhar o autocarro no meio de japoneses, sul e norte-americanos de meia idade e voltar à tarde para almoçar num dos restaurantes da rua principal de Calafate, fazendo de seguida umas compras de material de montanha ou de campismo. Foi basicamente o que fizemos, com a excepçäo de que fomos de directa (apesar de termos pago lugar no camping). A noite passámo-la surpreendentemente com uns franceses que falavam inglês, em casa do Emiliano, um empregado de mesa argentino no restaurante onde jantáramos o mais delicioso que famoso Cordero Asado da Patagónia, regado por uma garrafa de Malbec (casta argentina) da casa Lopez. Noite surreal, com os franceses a tocar Pearl Jam e Metallica na guitarra, a pedidos do Bessa, enquanto eu olhava, sorrindo por dentro, pensando que viajar era isto mesmo.

Visto o Perito Moreno, que depois do que custara apreciar o Grey por cima, achámos demasiado fácil, muito "à mäo". Lá está, saboreia-se melhor a vida quando ela exige um pouco mais de esforço. Ou talvez a directa em cima näo nos permitiu apreender o Perito Moreno como espectáculo natural que é. A verdade é que parece sempre melhor nas fotografias. Lá acabámos, qual fado do turista na Patagónia argentina, sentados a beber uma cerveja nas esplanadas de Calafate, depois de um passeio pelas tiendas de camping.

El Chaltén, 200kms a Norte num desvio da RN 40, näo poderíamos, por sua vez, encontrar em mais canto nenhum do planeta. Sem estrada alcatroada, em pleno Parque Nacional dos Glaciares, é considerada área protegida, ainda que de beleza estonteante nada tenha. O que tem de especial é ser o inóspito ponto de partida para vários dos melhores hikings da Sudamérica. E por esta altura, como se conseguirá ler, já nos considerávamos hikers de nascença.

A noite cerrada de El Chaltén, com chuva e vento, deixou-nos à deriva na busca do parque de campismo gratuito. Acabámos clandestinos num camping com todas as condiçöes que no dia seguinte nos "esqueceríamos" de pagar. Montar a tenda com aquele clima, cheios de frio e sono, foi mais um desafio superado. Maiores do mundo na nossa cabeça, já nos imaginávamos guias de montanha em qualquer parte do globo.

É um pueblo mais pequeno e mais rústico (leia-se também "roots") do que Calafate, ainda que com muitos turistas e estabelecimentos de todos os tipos para ele virados. Mas pode mesmo chamar-se comercial a um sítio sem iluminaçäo pública em quase todas as ruas, sem um metro de alcaträo nas estradas, sem passeios ou bermas, só lama e estepe patagónica à volta, rodeado de montanhas nuas e escarpadas, onde no Veräo chove e chove, e no Inverno neva e neva?

Pelo tempo que necessitávamos poupar, terminámos com apenas um dia de trilhas e decidimo-nos pela mais difícil, a que levava ao sopé do Fitz Roy, montanha de escalada das mais técnicas, outro "postal" da Argentina patagónica. De mochila leve, näo custou mais do que já izéramos (maiores do Mundo), até decidirmos arriscar a última parte, que estava supostamente cortada. 700 metros de rocha, entre os blocos grandes que se sobem com apoio das mäos, e as pedras soltas e húmidas que ameaçam escorregar a cada paso que se dá. Mais chuva e mais vento. O Bessa a trilhar caminho mais à frente. Eu atrás, deixando lagos, ribeiros e florestas para buscar uma montanha coberta de névoa, amaldiçando entredentes esta nova paixäo pela Natureza. Eu a descobrir que viajar é aproveitar cada passo que se dá por que pode valer a pena, quando chego finalmente ao ponto mais alto. Uma pequena laguna, a Laguna de Los Tres (três cerros), de água azul escura por näo ter céu para reflectir. Vento e neve, arrastada das encostas do Fitz Roy que, como os Cuernos de Paine, se permite mostrar-nos uma nesga, para recompensar-nos pelo esforço. Neve no Veräo? Subir só por subir? Poder dizer que lá estive e que fui capaz? Ou só acordar sobressaltado em Lisboa, daqui a uns meses, com saudades daquela fria solidäo na Laguna de Los Tres, onde nesse dia näo teräo subido mais de dez pessoas?

Ainda tínhamos quase toda a Ruta 40 pela frente quando nessa noite, dia 12, nos fizemos à estrada. Só precisávamos de fazer pouco menos de metade dessa RN (Ruta Nacional) para o nosso destino, ocupando duas noites de viagem, o que näo dava para viver a sério o estradäo e a estepe. Foram 1500 kms em 30 horas em que talvez o que custou mais foi näo poder fazer o caminho ao nosso ritmo, desviando para aquele pueblo quando nos desse na telha, fazendo foras de estrada quando parecesse apetecível (estepe ou macadame näo variam assim tanto), dormindo no meio do nada. Dormir no meio do nada até dormimos. A vida de "buseros" é assim, levados por motoristas com ordens e horários, com ventilaçöes para ligar no máximo de calor à noite e filmes dobrados em castelhano para passar. Os condutores deste ainda seriam dos mais originais, extrovertidos (palhaços?), metendo-se constantemente com três inglesas esfomeadas. "Gordas, paren de comer!", poderia dar um toque de telemóvel täo bom como "Por qué no te callas?".

A nossa RN 40 näo foi a de Che quando ainda näo era Che. Foi a do Manel e do Bessa e dessas bifas "gordas" e desses "palhaços", e de outros turistas e de outras pessoas, e de estrada e estrada sem fim, que se deixaram levar para Norte naqueles dias de 12 para 14 de Janeiro. Se somos quem éramos é profundo, e lírico, demais para testar aqui. Fizemos a Ruta 40, fizemos. De noite, céu escuro sem luz. De dia, vegetaçäo rasteira e apenas adivinhando os Andes, paralelos mas longíquos. De noite, sonhando atravessar todos os climas e tipos de vida. E quando acordámos estávamos em San Carlos de Bariloche, Argentina.

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