7 Meses na América do Sul

A PUC de Santiago, o Direito chileno, o pisco e as empanadas, os Andes, o Pacífico, a Sudamérica, Rapa-Nui ... enfim, La Libertad.


27.9.07

Mapa de uma Road Trip


Um pouco tosco, este é o mapa da Road Trip Tuga durante as Fiestas Pátrias.

A encarnado o caminho para Norte e a azul o regresso para Sul.

Quando adicionar, aqui ao lado (Por el Suelo), o mapa da viagem fica tudo mais perceptível. Fica já o aviso que a viagem se divide em oito partes, não totalmente coincidentes com os dias que passámos por um Chile que se desdobra em milhares de paisagens. Andes, deserto, sal, mar, altiplano, cidades industriais, portos, praias, cidades de barro.

O mundo quase que cabe no Chile.

26.9.07

30 dias

Um estrangeiro com visto de permanência no Chile tem 30 dias para pedir a Cédula de Identidad, ao qual corresponde um número - o RUT. Se não, é expulso.

Não, não é. Tem é de ir a um Ministério em vez de ir ao Registro Civil apenas. Se calhar até era mais rápido. Hummmm... Adiante.

Estávamos a 7 de Setembro. Fazia 30 dias certos que tinha chegado. Já tinha despachado o registo do meu visto na Policia Internacional, pelo que pude seguir directo para o Registro Civil. Ainda bem, era já uma da tarde e todos os serviços públicos fecham as duas cá.

Vá de correr para o autocarro com dois pacotes de Nesquik na mão. O 501 deixa-me no centro e depois é coger a Calle Moneda para Oeste. Não há muito tempo para pensar, deixa-se o telemóvel e uns trocos em cima da mesa. Que venha a carteira e o passe, e umas notas para pagar o visto.

O sol bate de chapa no autocarro, as pessoas vão de espírito solto e sorriso convidativo. Até parece que é fim-de-semana de Verão tal a alegria e o calor que pairam no ar. Apesar desta leveza, as pessoas estão concentradas a ouvir a radiola que o motorista leva lá à frente, aos altos berros, com o som já distorcido. A selecção chilena de futebol estreia-se hoje sob o comando de Marcelo Bielsa, argentino duro, em quem os chilenos confiam que ponha ordem no balneário e a equipa a jogar futebol. Isto depois do escândalo alcoólico, sexual e de indisciplina em que se tornou a eliminação do Chile na última Copa América.

Quando entrei no autocarro sabia que o Chile ia a ganhar, depois da festa que os vizinhos fizeram com o golo. A meio da viagem a Suiça empata. Da maneira que os narradores chilenos noticiaram o golo parecia que queriam que El Loco Bielsa se estreasse a perder, como todos os técnicos da selecção chilena que fizeram o seu primeiro jogo no estrangeiro. Mas não. Golo, cá, é golo, é festa, seja de quem for.

O ânimo não foi muito afectado. De roupa ligeira e cara descontraída seguiram as pessoas. E eu também, porque não?

Lá chego ao registo. Faltavam fotocópias (vá lá que levava os documentos todos!), «y va al tiro que sólo tiene diez minutos antes que cerremos». Lá fui tirar - custavam 120 pesos (cerca de 18 cêntimos), e eu só levava uma nota de 10 lucas, quase 14 euros. Fiquei a dever. Boa hospitalidade chilena, a paz de alma prossegue hoje.

Na hora e vinte que fiquei de pé na filinha ziguezague - aqui e nos bancos não há senhas - deu para ver o fim do jogo. 2-1, ganhou a Suiça. El Loco não quebrou a tradição e a estreia da nova Roja não correu bem. Haveria de ganhar, uns dias depois, à Áustria. No final, noticiário da tarde. Notícia seguinte à da selecção - Maddie. É impressionante as manchetes de jornais e o tempo de antena que tem ocupado o desaparecimento/falecimento da Maddie no Chile. Ninguém, cá, acredita que os pais tenham alguma coisa a ver mas, na televisão, a polícia portuguesa dá a mãe como suspechosa.

Lá me atendem, simpaticamente. Tiram-me a fotografia com as máquinas digitais ligadas aos computadores. Até a assinatura é digitalizada por uma máquina. Tudo do melhor. Lá me rio para o passarinho e o ar de parvo é notório. Depois tiram-me as 10 impressões digitais - não uma. Parece sensato; para quê só o polegar direito se podes ter todos? Entretanto sou filmado para alguma coisa - estrela de documentário no Chile? Não sei se quero, tenho de ligar ao meu agente. Bom, lá me dão o RUN, papel e números prvisórios do RUT (que vou buscar amanhã, 27 de Setembro), e ponho-me a andar, cheio de fome e sede.


[ar de parvo a rir; olho esquerdo meio aberto meio fechado]

Qual turista, tinha levado o guia - sim, este mesmo - para me entreter enquanto esperava. É que homem prevenido vale por mil e quinhentos, diz este senhor. O Barrio Brasil é mesmo aqui ao lado. O que é se passa aqui? Bairro calmo de dia, com o centro na Plaza Brasil; boémio de noite, com a discoteca Blondie a marcar o ritmo. Avisado pelo fiel Planeta Solitário, páro no Peperone, na esquina da Plaza Brazil, onde como as melhores empanadas que já comi no Chile - uma de espinacas e outra de queso camarón, regadas com uma Kuntsmann Lager. A decoração é de café boémio, perdido em cidades europeias dos meados do século passado. Paris, talvez. Hei-de lá voltar para tirar fotografias.


Daqui sigo a pé até ao centro, Santa Lucia, o que ainda é bastante. Apanho o metro, e como se não estivesse cansado, ando mais uns kms desde a estação de Pedro de Valdívia para minha casa. Não sem antes passar numa livraria simpática, na Av. Providencia.

O trigésimo dia não teve uma trigésima noite. Ou melhor, teve, mas foi em casa a ver filmes, descansadinho, com um copo de vinho e pipocas. Há coisas que até combinam. Como Santiago e eu.

PS - os caminhos e os sítios referidos neste post já estão identificados no mapa de Santiago aqui ao lado; dêem uma olhada

Dor de garganta

Tal era o fenómeno na Londres industrial, que os ingleses lhe deram um nome. A mistura de fumo e nevoeiro (smoke e fog) é, agora, smog (e não fumo e fogo, como abreviei aqui). Basta procurarem na Wikipedia que logo surge que um dos exemplos de smog mais intensos a nível mundial é Santiago - névoa seca é o termo técnico em português, aparentemente. Aos escapes dos carros junta-se o efeito de Foehn, a acumulação de vapor de água junto às encostas de montanhas, ainda que um qualquer nevoeiro matinal servisse. Com tudo isto, o ar em Santiago torna-se irrespirável para quem ambiciona pulmões limpos, puros e abertos. Ou seja, ao fim de uma semana cá, surge a inevitável dor de garganta, e tosse.

E a isto se junta agora o pó do deserto, que se infiltrou em todos os poros do meu corpo durante a semana passada.

Pastilhas para a garganta, procuro nas farmácias. O primeiro pacote que comprei parecia uma embalagem de Werther's Original (sim os tais do avô e do neto), mas de mel - ok, pareciam mais Halls de mel, mas tinha mais piada se fossem Werther's. Resultaram por uns dias - ainda não tinha ido ao deserto. Round 2, agora numa farmácia com melhor aspecto, lá me dão umas pastilhas mais ao estilo da Mebocaína. Ok, funcionaram enquanto duraram, mas agora já não há mais, e a garganta até já está inflamada, a ameaçar a fechar - comer, engolir, falar é um suplício. Sobra-me o chá a ferver com mel, e uns anti-inflamatórios, postos discretamente pela mãe, qual anúncio da Cêgripe, na farmácia que trouxe para cá.



[imagem de Santiago, com os Andes sufocados pela poluição;
nota - o edifício em primeiro plano da direita é onde fica o consulado de Portugal]

Lusco-fusco em Santiago

Uma destas quartas-feiras - 5 de Setembro, creio - fui dar uma volta por Santiago, ao atardecer. O Juan queria ver o centro e ver a roupa em segunda-mão da Calle Bandera (de que já falei aqui, e sobre cujas lojas principais, que afinal há por toda Santiago, podem saber mais acolá) e eu tinha prometido a mim mesmo que ia aproveitar as oportunidades que tivesse para ir mais vezes para esses lados. Afinal, era mais um dia de caña com pouco para fazer.

Percurso simples, apanhar o 501 na esquina da Suecia com a Bilbao e sair junto ao Palácio de La Moneda, o palácio do Governo. A pé, passar pelas peatonais como a Ahumada, coger a Bandera e chegar à Plaza de Armas (nota - todas as cidades chilenas têm uma, ou quase).

Aqui, à parte da envolvência da Catedral Metropolitana de Santiago e das palmeiras, das estátuas e das galerias de comida, vive-se um outro ambiente. Primeiro, passa uma pequena procissão, com gente de todas as idades e de todos os estratos sociais. Depois, como que programado para entrarem na praça depois de seguir a procissão para outros caminhos, surgem jovens com ar politizado, quanto mais não seja para chatear os pais.

São as Juventudes Comunistas Chilenas, numa das manifestações do seu 75º aniversário. Ao lado, um grupo de skinheads. Tremo de confusão, ou de pensar que vai haver confusão. Afinal não. São os Skinheads Antifascistas. Comemoram o falhanço de um golpe de estado fascista no Chile, há décadas atrás. Chego-me para trás, cansado de tanta mudança num espaço físico e temporal tão curto, tudo à porta da velha Catedral. O Juan fica por lá, pelo meio, tira fotografias - melhores que as minhas - tenta saber o que se passa, faz amigos.

Está na hora de abalar. Coger a Ahumada para Sul e meter-nos no metro. Estou podre.


Chegar a Casa

Depois de uma grande viagem, a chegada a casa tem sempre um sabor especial. O corpo parece que fica alerta com a presença de lugares familiares. Do mais profundo pedaço da nossa existência até à ponta dos cabelos sentimos um estremecer, um esgar, um clímax que se aproxima. As necessidades fisiológicas, todas elas, surgem, mesmo que algumas não tenham já avisado. O corpo atura-as e prepara a chegada, momento de as satisfazer.

Do ponto de vista físico, parece-me sempre que o ponto alto de uma aventura é o regresso a casa. Passei isso desde sempre nos campos de férias, nas férias com os pais, nas férias com os amigos - mesmo nos curtos fins-de-semana de festa fora de Lisboa.

Não há nada como chegar a casa.

Ao dar por mim a viver isto, tudo isto, à entrada de Santiago, e cada vez mais à medida que o bairro de Providencia se abria ao jipe, chego à conclusão que aqui estou em casa. De corpo. E alma.

PS - os próximos posts vão ser bocadinhos de escritos que deixem na minha cabeça arrumada em casa; os da outra, que foi por esse Chile à descoberta, vêm a seguir.

18.9.07

O deserto

Um saco de plastico rola pelo chao, empurrado pelo vento frio da madrugada. O sol adivinha-se por detras dos Andes mas teima em mostrar-se.

Estou no deserto. E o blog tambem. Deserto de posts.

Quando regressar do Atacama, por esse Chile anorte, adentro e afora, luego tratarei disso.

Por ca vou vivendo das paisagens de sal, da Internet banda ancha e um jugo natural.

11.9.07

Parrillada 3


Isto é, já não é possível estabelecer uma lógica de dia-a-dia. É mais fácil saber os dias que passam de acordo com os momentos marcantes. O teste ali. A saída depois. O jantar aqui. A apresentação naquele dia.

E com isto os dias vão passando. Aulas. Metro. Casa. Espanhol. Trabalho. Portugueses. Reggaeton. Várias coisas tornam-se omnipresentes no quotidiano santiaguense.

Por exemplo, já sei que se passar alguns dias sem estar com os portugueses os vou encontrar à mesma no Espanhol, ou que me ligam para ir jantar. Aos poucos vamos avançando nos nossos planos para as Fiestas Pátrias. Dia 14 aqui tão perto e San Pedro de Atacama ali tão longe.

Nos entrementes, mais aulas. Trabalhos em espanhol e em inglês. Mais um dia que corre, mais uma amizade que se fortalece. É difícil, ou cansativo, descrever os dias. Quarta-feira dou uma volta pelo centro de Santiago. Quinta-feira fico por casa. Sexta nova volta, agora pelo Barrio Brasil. Mais um pouco da viagem que se prepara.

O fim-de-semana passa e as sete horas e meia, repito, sete horas e meia de aulas chegam. Pelo meio, intervalo para ir pagar a viagem a Valle Nevado, é já nesta quarta-feira que está a chegar. Hoje, no final da parrillada, mostrar Santiago pela noite - Barrio Bellavista - a uns tugas que estão a acabar o seu passeio por esta Sudamérica - rumo a Buenos Aires.

Na chegada a casa só dá tempo para um rápido post pelo blog. E ouvir mais um bocadinho de reggaeton, esse som que nos começa a consumir.

8.9.07

Correio ao sábado

Desde já aviso que devo uma parrillada, um post sobre uma quarta-feira à tarde, outro sobre o "fumogo" e ainda um sobre um número mágico. Antes de avançar para esses quatro, prefiro falar sobre uma manhã de sábado em Santiago.

Imaginem um corpo moído pelo ginásio e por várias noites de pouco sono. Agora a pressão feita pelo Juan e o Joaquín, espanhol e equatoriano, para sair com eles. Recuso-me e passo a noite de sexta-feira a ver filmes, quase até às cinco da manhã.

Não dormia fazia três horas quando chegam eles do seu carrete, insistindo para que me ponha chancho. Já diz o velho e sábio povo - "se não os podes vencer, junta-te a eles". Após dez minutos de tentativas frustradas de me entrarem no quarto pela janela lá vou com eles para a sala, onde esperam que chegue a Maria, a nossa "segunda mãe", para bailar com ela.

Vá de acordar mais gente. O Roberto, do Equador, o Tuomas, da Finlândia, o Matthew, da Nova Zelândia/Irelanda. Pelo caminho, baixas colaterais; raparigas que acordam com o barulho - Bianca, da Bélgica, Michaela, da Áustria, e Amanda, do Chile. Mas animado. Ao menos até a Karla, do México, descer do seu quarto, indignada com o barulho. Fim de fiesta.

Não. Tocam à porta. Dois embrulhos que facilmente reconheço como sendo dos CTT entram pela porta. A um sábado de manhã, correio que chega da família, em Portugal. «Es mío, es mío». Qual Manelinho em plena manhã de Natal corro a guardá-los no quarto. Agora que já todos estão a caminho, finalmente, das suas camas, e a Maria fica sozinha a limpar a casa, posso ter o meu pequeno momento de felicidade infantil.

Os embrulhos estão aqui já em cima da cama. Vou abrir e voltar a dormir, de certeza que embalado por um sorriso largo de criança.

2.9.07

Mais um fim-de-semana mais caña

Sábado caseirinho que passou, aproveito para ver filmes (entre eles o quarto do Harry Potter - o cicatrizes persegue-me pela Sudamérica), ir às compras, actualizar e desenvolver o blog.

A propósito, reparem nas novidades do lado. Albúns de fotografias, em Retratos da Sudamérica, e Mapas do Google Earth dos sítios por onde vou passando, sob o título Por el Suelo. Fotografias, para já, só de Valparaíso e mapas com alguns, poucos, sítios de Santiago e Valparaíso. À medida que o tempo passe vou actualizando os albúns e os pontos de referência.

Amanhã é dia de arrumar a roupa - que lavei e sequei ontem (sexta) - e fazer um trabalhinho para o Seminário de Contratação Internacional. Ah e ainda não engomei as camisas!

Prueba solemne

O nome até assusta. Prova solene.

Cá existem os controles, que são chamadas escritas ou orais, normalmente a propósito de uma lectura. E os examenes, claro. Pelo meio existem as pruebas - testes ou frequências, também elas escritas ou orais.

A prueba de sexta, de Constitucional II, ou Derechos, Deberes y Garantias Fundamentales, era escrita. No próprio dia ainda me assaltou a ideia de ter de ir de fato e gravato - afinal, era "solemne". Fui só de camisa, normal. E ainda bem - apesar do epíteto, quem organizava a prova era os dois ayudantes, monitores, um rapaz e uma rapariga da minha idade (a cadeira é do quarto ano cá), ele de ténis e barba de dois dias e ela igualmente informal. O que seria aparecer ali de fato, já não bastava andar de dicionário na mão com ar de parvo.

Mais parvo fiquei quando vi toda a gente guardar a Constituição - exame de Derecho Constitucional sem se poder usar a Lei Fundamental? Saber artigos de cor? E eu que demorei 5 dias a comprar uma Constituição do Chile - aspecto curioso, só uma editora é que as vende oficialmente, e só, ou quase só, nas suas livrarias próprias. E estava esgotada até meio de Setembro. No dia antes à tarde lá tinha comprado num vendedor de rua uma coisa, não um livro, mal cortada (não tem formato de livro, não é perfeitamente rectangular), que me ajudou a ter uma noção das normas relevantes, mas não sabia artigos de cor para citar. Puxei da cabeça e lembrei-me de alguns toques que me pareceram importantes e acabou por não correr assim tão mal.

Entretanto, outro contra-senso. Para a prova solene os alunos levam as suas próprias folhas - normais, arrancadas dos cadernos ainda com aqueles restos de papel que se rasgas, por estarem à volta das argolas. Folhas com ar de rascunho, portanto, sujas. Lá peço ao chico do lado umas três folhas. Entregam os enunciados, duas horas para 18 perguntas. Cada vale 0,3, excepto três que têm pontuação a dobrar. O total dá 7, a nota máxima cá. Começo devagar mas à medida que me concentro e passo a pensar em espanhol a esferográfica ataca sem menos as folhas. E só usei o dicionário umas dez vezes.

Três perguntas ficam pelo caminho, não fazia a mínima ideia; não chegaram para tudo os apontamentos que uma colega chilena enviou por mail, mas ao menos evitaram a leitura impossível do Manual. Faço a prueba para 6,1 e é capaz de dar para o 4 - o mínimo para aprovação. Para o pouco que consegui estudar é uma vitória. E é também porque ter 4, 5, 6 ou 7 cá é indiferente - só me dão as notas finais em Portugal de acordo com a média das cadeiras que fizer lá, para além de ter ainda muito semestre pela frente.

Acabou por não ser muito dolorosa, esta primeira experiência de avaliação no Chile. Um pouco estranha, diferente, pouco solene afinal de contas, mas não dolorosa.

Espírito de protesto

Parou tudo. A faculdade envia vários mails - «A faculdade encerra as suas actividades às 16h»; «Afinal encerra às 15h»; «Não, último aviso, a partir das 13.30h todas as actividades académicas cessam». As pessoas evitam andar de transportes, com medo de paralisação. Os jornais fazem manchetes e não se fala de outra coisa. Quarta-feira, 29 de Agosto, é dia de protesta. A CUT - Central Unitaria de Trabajadores - marca greve geral nacional. De uma forma global, pelo descontentamento com a Presidenta (cá dizem mesmo assim) Michelle Bachelet, da coligação La Concertación, que agrupa partidos sociais-democratas (esquerda moderada) e democratas cristãos (direita moderada).

O Chile vive, social e politicamente, num equilíbrio ideológico entre a esquerda quase-revolucionária e o Cristianismo. Tudo isto, obviamente, é deixado de lado com a necessidade de se adaptar a um mundo capitalista e, assim, o Chile tornou-se uma economia neoliberal, que lhe permitiu, nestas quase duas décadas de democracia, tornar-se a economia mais desenvolvida da Sudamérica.

Por esta viragem capitalista, nenhum presidente, mesmo que originário da esquerda - como é o caso de La Presidenta - terá sossego. Não sei se as manifestações são frequentes mas são mediáticas, pelo menos.

Como é óbvio, havia alguma excitação entre os estrangeiros para ver a manifestação. Uma coisa diferente, ver o povo na rua, a luta. Ainda mais se estamos na Sudamérica, continente historicamente revolucionário.

Eu, por acaso, tive de ir à faculdade entregar uma coisa e fui mesmo em cima da hora em que ia fechar e notei que havia menos movimento, em geral, como se fosse fim-de-semana. Como a minha faculdade é mesmo no centro - ver mapa de Santiago ao lado - pensei que ainda pudesse ver qualquer coisa, mas sem grande expectativa. À saída, aventurei-me um pouco mais para Este. As lojas fechavam as portas e reforçavam as entradas das lojas com grades de metal, como se preparassem para um motim e não uma marcha de trabalhadores. [curiosamente, os falantes de inglês cá de Casa referiam-se ao protesto como riot e não demonstration] Nas margens das ruas muitos jovens reuniam-se em grupos e gente com ar claramente não andino sacava de máquinas fotográficas. Estava no olho do furacão, portanto.

Calmamente, dou por mim a atravessar a Alameda, a avenida principal, sem perceber que as pessoas se mantinham junto aos prédios. O trânsito fluia bem, com poucos carros, mas sem estar cortado.

E então aconteceu. Pedras começam a chover. Lá percebi porquê, um carro dos Carabineros - «pacos», chileno para bófias - atravessa a rua no mesmo sentido que eu. Vá de fugir para o metro, enquanto os canhões de água varrem os passeios. Jovens, de kefieh (lenço árabe, à Arafat) a tapar a cara, escondiam-se nas esquinas enquanto recolhiam pedras. Afastei-me do perigo e pus-me a observar a situação por uns minutos desde a entrada para o metro. Mais polícias se reuniam - não vi, mas chegaram a utilizar gás lacrimogéneo - e espalhavam-se pela Alameda e perpendiculares em busca dos protestantes.

Tudo isto porque a manifestação não tinha sido organizada pelo governo, tendo a polícia ordem para destroçar qualquer tentativa de protesto nas ruas. E também porque a manifestação foi pequena - só reuniu cerca de 4000 pessoas em Santiago (cidade com 6 milhões) e 450.000 no país inteiro - necessitando da intervenção de jovens anarcas para ganhar mais mediatismos. Saldo final; 600 pessoas presas em todo o Chile e um senador agredido por um polícia, quando quis passar com uma multidão, esta sim pacífica, por uma barreira da polícia.

Calmamente, pus-me no metro e lá fui a um centro comercial catita procurar a Constituição para a prueba de sexta e comer uns crepes.

Nessa noite, ensaiámos na Casa a nossa pequena manifestação. Tínhamos feito um abaixo-assinado protestando contra as condições da Internet e ameaçando não pagar a próxima mensalidade respeitante ao acesso à net nos quartos - 10 lucas, pouco mais de 14 euros - e a Carmen, a senhoria, veio cá para falarmos com ela e com o Alfredo, marido e homem dos computadores. Nada feito, a culpa é nossa que fazemos downloads, etc etc etc. Vai daí votou-se a favor do bloqueio de downloads, com efeito daqui a uma semana. Agora para tirar músicas da Internet só comprando no iTunes ou isso.

Cansado de tanta revolução, ou pseudo, fui dormir cedo com (mais uma) ligeira sensação de nesse dia ter perdido um bom momento para andar com a máquina fotográfica. Deviam inventar uma máquina que se incorporava na retina e era só piscar os olhos. Daí seriam directamente enviadas para o nosso mail. Não sei como é que nunca se pensou nisto.