7 Meses na América do Sul

A PUC de Santiago, o Direito chileno, o pisco e as empanadas, os Andes, o Pacífico, a Sudamérica, Rapa-Nui ... enfim, La Libertad.


26.10.07

V. Desertos e Desastres

Faixa 09. Gipsy Kings - Salsa Latino Medley

Cenário idílico, ao menos em versão chilena. Sal e deserto à volta, flamingos, mais sal e mais deserto. Sol e céu azul. Paz e tranquilidade. Depois de absorvida toda esta calma da Laguna Chaxa, a sul de Toconao (que por sua vez é ainda mais a sul de San Pedro, para dentro do já nosso Atacama), só apetecia rolar feliz para Santiago. Mas a viagem não ía ser assim tão fácil.

Marcha-atrás, compasso de espera para beber água e meter primeira. PAAAAAAAAAAAAAAAAAU! À nossa esquerda, atrás, alguém acabava de decidir romper a nossa harmonia com o mundo, abalroando-nos enquanto estávamos parados. Era o velho que nos tinha dado indicações em Toconao, que guiava uma Kia Besta - carrinha de 9 lugares a cair de podre. Um misto de sentimentos passou pelos seis, num espaço de minutos. Incredulidade, isto não pode estar a acontecer; raiva, o homem é parvo?; pena, ele não tem dinheiro para nos pagar; nervos, alguém viu o que o homem fez?; violência, vamos partir-lhe o carro; pena, outra vez; racionalidade, vamos ligar para o rent-a-car, para o seguro, para a polícia. Como era feriado, nem seguro nem rent-a-car. Sobrou-nos a polícia. Lá ligámos para o 133, número nacional dos Carabineros.

Lá vieram os de Toconao, já conhecidos, por que também aí pedimos instruções. O deserto acaba por ser pequeno.

Enquanto esperávamos, tempo para arranjar testemunhas. O caso começava a ser complicado já que o velho, que ao início assumia as culpas, agora negava tudo e nem sequer tinha seguro. À sudamericana, propusémos resolver tudo se nos entregasse 100.000 pesos - cerca de 150 euros. Obviamente, não tinha.

Por sorte, lá deu para ver mais um pôr-do-sol, mais uma "momento kodak" (hoje, mais um "momento máquina digital ultra-compacta"), com a esfera de fogo a fugir para o mar atrás da Cordilheira do Sal e a deixar o deserto, branco do sal, alaranjado da luz.

Lá chegaram os Carabineros de Toconao, lá fomos para Toconao esclarecer tudo. Pormenor - os turistas espanhóis que o velho transportava passaram as quase quatro horas do impasse (das 18h às 22h) dentro da Kia Besta. Até nos tiveram que pedir papel higiénico para poder ir atrás das moitas, que os Carabineros não os deixaram usar a sua casa-de-banho (respeito acima de tudo ou vergonha da sujidade?). Já não sabia de quem ter mais pena; se dos turistas prisioneiros, se do velho sem dinheiro, se de nós. Mas, estando juntos, sempre tudo parece mais relativo, pelo que, quanto a nós, estava tranquilo.

Decidimos não fazer uma denúncia, apenas pedir um relatório de ocorrência em que o senhor, finalmente, vencido pela exaustão (até os Carabineros o pressionaram), lá aceitou em declarar que nos abalroara. Serviria para que o rent-a-car nos ilibasse de pagar estes danos específicos - pensávamos nós...





[esquadra - retén - dos Carabineros de Toconao]

Passado este calvário, jantar improvisado num almacén típico da Sudamérica em Toconao. Daqueles que serve desde talho a farmácia, incluindo loja de ferragens, embora não seja muito maior que o nosso jipe. Sanduíches de queijo, atum, bolachas, água, sumo, batatas, mais uns munchies para a viagem e listos.

San Pedro de Atacama - Calama - Antofagasta - tudo parecia rolar a nosso favor, tentando atravessar o deserto pela noite para apanhar o tempo perdido. Ou não.

«- O que é que aconteceu?
- Eh pá, tivemos um furo, vou encostar»

E aqui prosseguem os desastres. Para quem não se lembre, os jipes têm o pneu sobresselente atrás. Uma vez que seria fácil de roubar, uma das porcas que o prendem tem uma fechadura. Esta abrir-se-ia - abrir-se-ia - com a chave da ignição. Pois, nós apanhámos o único jipe em que a chave de ignição não funcionava. Eram 4 da manhã e estávamos em pleno deserto do Atacama, a 300 kms de Antofagasta e a 100 de Chañaral.

Vá de tentar tudo, dividindo tarefas. Rebentar a fechadura pela força, impossível. Tentar ligar aos outros, que já estavam a dormir em Caldera, mais de 200 kms para sul, a pedir ajuda; não nos deram muita atenção, até porque a rede é quase nula quando se está em pleno deserto. Ver o quilómetro em que estávamos para ligar a assistência em viagem ou à polícia (coube-me a mim); lá acabei por perceber que não havia placas de um em um quilómetro, nem de dois em dois ou sequer três em três. O número certo era cinco, soube eu depois, e, depois de andar quase meia hora para Norte de novo, quando o jipe não era mais que quatro pontinhos luminosos a piscar, decidi regressar. No meio disto, o céu. É impossível descrever a luz das estrelas, as milhares de milhões de luzes, entre elas muitas "estrelas cadentes". Nunca vi um céu assim e duvido que conheça alguém que tenha visto. Ou seja, quando tudo parece perdido, há algo a que nos podemos agarrar.

Para além deste céu brutal, tivemos que nos agarrar uns aos outros para nos aquecermos dentro do jipe, para tentar dormir ao frio do deserto. Não sem mais um nascer do sol andino. Estamos a começar a ficar bons nistos.




[...
impossível de reproduzir;
oxalá tivera a tal máquina implantada nos olhos]

Depois de poucas horas - duas, três - de pouco sono, lá voltamos a virar atenções para a estrada, para pedir ajuda. Lá parou uma família de carrinha de caixa aberta todo-o-terreno. Pneus largos, é capaz de servir. Mas era Nissan e nós Suzuki, não deu. Mas deu-me boleia para Chañaral, pneu debaixo do braço, para procurar uma "vulcanizadora" onde pudesse remendar o pneu.

«Imposible, está muerto», disseram-me em várias. E pneus novos iguais, não havia neste pueblo feio e muito sujo. Apesar de todo o apoio desta família, que me deu boleia, comida, até chegou a oferecer dinheiro, não havia maneira de resolver a situação. Já eram 10 da manhã e o conselho único do rent-a-car, com que falava ao telefone, era partir a fechadura. Obrigadinho!

«Diogo, partam essa m... à força, nem que peçam a um camionista para isso» - sms enviado quando já desfalecia ao sol, em cima de um pneu furado, numa estação de serviço em Chañaral.

«Já conseguimos!» - sms recebido meia-hora depois. Um sorriso passou-me largo pela cara suja e cansada. Gastei as forças todas nesses dois segundos de alegria, finalmente podia dormir.

Enquanto dormia, não dormia com o pneu debaixo do braço e costas contra a parede de vidro da estação de serviço, dei por mim a pensar que, no fundo, era este o tipo de coisas que queria viver - e, sobretudo, superar - quando decidi vir para o Chile. Onde é que isto se podia passar na Europa? Nas auto-estradas de França, Itália, Alemanha? Agradeci estas horas no deserto e a forma como, todos juntos, as ultrapassámos. União, solidariedade tuga, tendo por base a boa disposição, mesmo quando a corda estava a ponto de ceder, de tão esticada que estava. A música escolhida para este episódio não é mais do que um reflexo disto mesmo. Quando as circunstâncias pediam um fado, algo trágico e fatalista, respondemos com salsa e risos. E saímos por cima, rumo a Sul e ao Pacífico.

Faixa 10. Don Maclean - Vincent

[esta sim, para ouvir calmamente a pensar na noite atacamenha]

25.10.07

IV. Alto e Plano

Faixa 06. Xavier Rudd - Fortune Teller

Altiplano. Alto e plano. Isso do plano faz sentido se nos quedarmos quietinhos no nosso hostel ou apenas por San Pedro de Atacama. Se nos pomos em aventuras de mountain bike, de ir aqui e ali à descoberta, o deserto deixa de ser plano. Mas o que é que tínhamos cá vindo fazer então? Este parece ter sido o mote que nos guiou a viagem toda.

Ah e sim, já tínhamos um hostel. Depois do nascer do sol [a expressão pôr-do-sol teima em aparecer no computador; porque é que o nosso cérebro se confunde tanto?], depois da luz surgir, lá fomos em busca de um hostel. De guia em punho - já não preciso de por o link, pois não? - aliás, com dois ou três guias iguais (iguais!) em cada carro, lá nos separámos e corremos todos os hostels. Ou quase. À hora a que tínhamos chegado as pessoas saíam para excursões e avisavam os dueños das residenciais se ficavam ou não mais uma noite. Assim que íamos tendo as respostas mais variadas; «no, estamos llenos (ou cartaz equivalente à porta); si, lo temos, pero solo para tres/cuatro/cinco personas; si, creo que si, tendrá que llamar al mediodia»; fomos até recebidos por uma senhora de pijama! Os preços variavam entre cinco e quinze lucas por noite - de sete a vinte e um euros, portanto.

Lá encontrámos a Residencial Don Raúl, que ficou de nos «llamar al medidodia». Mas que sim, devia ter, e a «ocho lucas por noche». Menos mau. Satisfeitos, lá nos encontrámos para o pequeno-almoço. A refeição mais importante do dia, lá dizem os sábios. E fizemos com que fosse - torradas, panquecas, ovos, leite, chá, café. Tudo para que saíssemos de lá satisfeitos. Começámos antes das nove e quase ao meio-dia ainda lá estávamos quando nos ligaram da Don Raúl, não o próprio señor mas outro, para nos dizer que tínhamos duas cabanas de cinco à nossa espera. Uma pronta à uma da tarde e outra às quatro. Bom, não dava para todos dormirmos, e também não tínhamos vindo cá para isso, portanto vá de dar uma volta.

Escolhemos ir fazer sandboard ao Valle de la Muerte. Nome apropriado para uma parte da Cordilheira do Sal, onde montanhas arenosas, também conhecidas por dunas, criam descidas óptimas para o sandboard (nada que saber, snowboard em areia...). Quando quase todos escolheram ir de jipe, três corajosos (parvos?) decidem alugar uma bicicleta. Escusado será dizer que era um deles, mais o Diogo e o João. Ah, obrigado ao João por termos dado uma volta gigante e ter-me levado a pensar que nunca mais recuperaria a sensibilidade nas pernas. De qualquer maneira, mais volta menos volta, lá demos com o vale e suas dunas. Impressionante. Ainda para mais quando não há cadeirinhas para trepar até lá acima. Ao fim de algum tempo lá chega a minha vez, cortesia de uns espanhóis que me emprestam a sua prancha. E se tenho pouco jeito para snowboard, para sandboard então... Depois de subir durante uns cinco minutos (que me fez lembrar uma odisseia narrada aqui) até ao topo e encerar a prancha com uma vela ridícula cheia de areia (!) lá consegui a proeza de me manter 5 segundos de pé. O suficiente para tirarem uma fotografia em que estou mais ou menos parecido com o desenho aqui em baixo. [quando me chegar às mãos, substituo]


[eu, mero esboço de sandboarder, a descer com o cachecol de Portugal - sempre! - e o boné (!) para trás a dar alguma - falsa - sensação de velocidade]

Depois de uma experiência (desapontante? manhosa?) de "prancha na areia" decidimos passar un rato da tarde numas lagunas. O tempo não quis que aproveitássemos as lagoas e decidiu fechar-se, arrefecido e cinzentão. Só que tive que ir dar um mergulho. Tive e tivemos. É que uma das Lagunas Cejar tem uma curiosidade; no centro tem um fundo azul turquesa (não, não é da cor da água), que se distingu claramente do resto da lagoa. Aí, apesar de a água ser fria, o chão larga vapor de água e enxofre e quem estiver lá em cima a nadar aquece. Ou melhor, assa. Era impossível ficar lá muito tempo - para lá do choque térmico de gelo cá fora e dezenas de graus a serem empurrados pelo núcleo da Terra cá para fora. Melhor, melhor é ir descansar outro rato para o hostel, passar uma noite tranquila e preparar que amanhã há mais. Isto não sem antes passar pela experiência da feirinha instalada numa das saídas de San Pedro de Atacama. Segunda-feira, dia 17, já lá vai e amanhã há mais. E é "O" 18, o feriado nacional.



[basicamente funciona assim - está um rato dentro de uma caixa de sapatos, que vai ser empurrado para uma mini arena onde tem sete saídas; a cada uma delas corresponde um prémio (tão diversos como lata de milho, garrafa de pisco, pacote de batatas, etc.);
quem adivinhar por qual o rato vai passar ganha o respectivo prémio;
calhou ao Mico, porta 2 - dá para ver o rato já lá dentro]

Faixa 07. The Killers - Read My Mind

Manhã tranquila, dormir bem, dar umas voltas pela cidade. Tarde turística pelo Valle de La Luna, um parque nacional em plena Cordilheira do Sal. Paisagens áridas, lunares, mas espectaculares - rima inevitável. Sempre com a companhia da nossa nova amiga Marine, francesa que se juntou ao grupo tuga no Valle de la Muerte. Desde as grutas de sal, às formações rochosas e ao pôr-do-sol [agora sim!] nas montanhas, vou deixar as fotografias falar por si.


[nas grutas não há luz; íamos tirando fotografias para ver o caminho;
ou para iluminar o artista que ia atrás]


[arte, com Las Tres Marias por trás;
da esquerda para a direita; Manel, Diogo, Mico, Bernardo, Gonçalo C., Miguel, Tomaz, Gonçalo M., Marine, João;
homenagem ao Chico, que ficou para cameramen]


[a caminho do mirador 1, o melhor para ver o pôr-do-sol;
do primeiro plano para o fundo, Gonçalo C., Marine, Miguel, João, Gonçalo M., Mico, Bernardo, Diogo;
o Chico e o Tomaz não tiveram coragem para subir a este e foram ao mirador 2]



[o melhor pôr-do-sol de Valle de la Luna;
mereceu palmas, claro, que somos tugas]


[o lado lunar de Valle de la Luna]

À noite, a noite do 18, convidámos amigos da PUC de Santiago para jantar, para além da já "luso-francesa" Marine. Apareceram o Trevor e a namorada Coleen (?), dos EUA e, mais tarde, as minhas housemates da Casa Suecia, Britta e Ella (alemãs). Jantar animado e em seguida fiesta no Adobe, café/restaurante/bar/discoteca com uma fogueira no meio, para aquecer. É verdade, é que à noite faz frio, muito frio, no deserto.


[a começar da esquerda, seguindo os ponteiros do relógio;
Gonçalo C., Colleen (?), Gonçalo M., Diogo, Mico, Marine, Tomaz, Manel, Miguel, Chico, João, Trevor (também conhecido por Clark Kent)]

Faixa 08. Vico C - La Vecinita

O reggaeton acompanha-nos cá no Chile, seja em Santiago ou em San Pedro de Atacama. Além disto, o Tomaz tinha esta música na cabeça e não a parava de cantarolar. Assim, como se disponibilizou para nosso condutor, depois da noite, para os Geysers de El Tatio (duas horas de viagem) merecia esta música.

Música latino-americana de qualidade duvidosa à parte, fica aqui, outra vez em imagens, o retrato desta alvorada de quarta-feira, 19 de Setembro de 2007.


[a essência de El Tatio;
ah, estavam -10º C]


[o sol surge por detrás dos Andes, como sempre cá, para nos aquecer]


[lamas!;
sem mais palavras - aquilo a que 99% das pessoas em Portugal associam o Chile]

Chegando de manhã ainda ao hostel cochilamos um pouco. Fazemos as malas e está na hora de começar o regresso a Sul, à inevitável capital. E é aqui que a viagem se transfigura, pois o grupo tuga separa-se em dois. Jipe verde (Mico, Chico, João e Gonçalo C.) vai seguindo directo. Jipe cinzento (Bernardo, Tomaz, Gonçalo M., Miguel, Diogo e Manel) tranquilamente entra pelo Salar de Atacama, volta a San Pedro, e depois logo se vê. Curiosamente, apesar de termos passado pouco mais de 48 horas juntos, a despedida da Marine foi bastante emocional. Para ela, claro, mas para nós também ficou um sentimento esquisito. Habituámo-nos tanto à sua presença que já era "um dos rapazes". Mas o Perú e a Bolívia esperavam por ela e a nós o quotidiano de Santiago.


[os Andes e o deserto vistos da Laguna Chaxa, da Reserva Nacional de Los Flamencos, em pleno Salar de Atacama]


PS - não tirei nenhuma fotografia de dia de San Pedro de Atacama, mas elas andam aí, na net e em máquinas de tugas de cá; é uma questão de paciência.

17.10.07

III. Aqui, onde a estrada nos trouxe

Faixa 05. The Magic Numbers - This is a Song

Estremunhados, começamos a ver uma cidade de barro. San Pedro de Atacama, camuflada pela noite e pelas casas de adobe, surge-nos ao descermos da Cordilheira do Sal. Esta é o conjunto montahoso de rochas e, claro, cloreto de sódio, que encurrala a planície atacamenha contra os Andes. Daqui se chamar Altiplano.

Uma pessoa facilmente pensa nestas coisas aqui sentada ao computador, ja a duas semanas e mais de 1600 kms de distância. Mas naquela madrugada fria de 17 de Setembro não pensávamos muito nisso. Só em ir para o hostel dormir. Ah! Qual dormir!? Acabámos, a conselho do Marko (?), do hostel de La Serena, por não marcar nada. Que nos roubavam, se tentássemos pelo telefone. Ok, chegamos e logo vemos. Pormenor - na semana das Fiestas Pátrias tudo está cheíssimo e San Pedro de Atacama já é turístico suficiente.

Perdidos por vielas estreitas, ainda mais alaranjadas pelas luzes públicas, por sentidos proibidos e já com os Carabineros de soslaio, fomos conhecendo o pueblo. Gente estranha, com ar perdido, turistas a conversar na rua (minha gente, são cinco da manhã e está um frio de morte!) e atacamenhos podres de borrachos a passear, ou a tropeçar, pelas ruas. Decidimos afastar-nos um pouco da vila para ver o sol nascer por trás dos Andes. Hum, estamos num parque de camionistas, e há algum lixo lá em baixo. Mas o nascer do sol faz esquecer o resto.

A luz que surge pelas montanhas afasta o frio. À volta, solidão. E sim, o tal saco que passa de mansinho empurrado pelo vento. Chegámos ao coração do deserto.

[imaginem o recorte dos Andes, dando a forma que queiram; agora o cambio de claridade do azul mais escuro para o claro, progressivamente mais claro; a luz forte e poderosa do sol que vem chegando até que finalmente se ergue e ordena que o dia, enfim, comece; fechem os olhos e vejam-no

- quando puder ponho aqui uma fotografia que não tinha bateria na minha]

14.10.07

II. Por la Panamericana

Olho pela janela do autocarro, numa qualquer viagem pelo Sul do Chile. O céu azul, em vários tons, arrasta uma melancolia de fim de dia. Ou de princípio da manhã. O azul, do céu e do mar, afagou-nos ao longo das viagens nas Fiestas Pátrias. Inspiro profundamente, fechando os olhos, e quando os abro parece que estou à saída de La Serena, céu limpo e luz clara a abrir-nos o caminho rumo a Norte...

Faixa 02. Bob Marley & The Wailers - Satisfy My Soul


[à porta do Hostal Croata, prontos para sair depois de uma calma noite de sono em La Serena]

La Serena. A Serena. Não se pode dizer que a ficámos a conhecer, mas é dela que partimos definitivamente para o que se pode chamar de outro mundo. Despedida ao sabor de um McDonalds engolido calmamente, o único fast-food capitalista entre os 1361 kms que separam Santiago e Antofagasta. O grupo hesita sobre o caminho a seguir. Directamente para Antofagasta, já lá no topo; com segurança e ligeireza pela costa, ver uns pinguins e uns spots de surf. Ah o mar, sempre o mar. Como é que viveriam os portugueses sem ele? Lá seguimos, para onde quer que a estrada nos leve, sem pressas.

Rodamos os condutores e os passageiros dos carros. De companhia, o deserto e o oceano. E o sol e a música. Uma química estranha atravessa o grupo todo, um entusiasmo quase infantil. É isto a felicidade? Santiago para trás das costas, o Norte Chico e o Norte Grande chilenos pela frente, as pruebas, qualquer dificuldade em falar espanhol, a poluição da cidade desvanecem-se a cada quilómetro que passa. Até parece que vivemos infelizes na capital! Nada disso; mas, tal como no fim-de-semana em Valpo, há alguma coisa no ar nestas viagens. Santiago é ainda desenvolvimento, Europa, habitual. Uma língua de alcatrão entre o Atacama, Andes e o Pacífico é aquilo com que sonhávamos ainda em Lisboa, ou quando decidimos e pusemos no papel de candidatura de intercâmbio - "PUC Santiago, Chile". É por isto as saudades, é por isto o arriscar vir até tão longe. É isto que nos satisfaz a alma e nos faz sorrir.


[algures na Ruta 5, rumo a Norte, o grupo tuga;
da esquerda para a direita; Gonçalo C., Mico, Manel, João, Bernardo, Diogo, Tomaz, Chico, Gonçalo M., Miguel]

A paisagem muda quando a Panamericana (Ruta 5, no Chile) nos afasta do mar, em direcção a Copiapó, coração da III Región, a de Atacama. Daqui se parte em direcção ao maior vulcão em actividade em todo o nosso Mundo, o Ojos del Salado. Ainda há quem levante a hipótese de fugirmos ao nosso destino e rumarmos a Leste. Não, decidimos, para San Pedro de Atacama, tranquilamente mas em força. O que nos obriga a desviar de novo para o Pacífico, para Caldera e a sua praia irmã, a Bahía Inglesa. O alojamento está complicado mas lá encontramos uma solução económica na Plaza Central de Caldera, onde já se festejam as Fiestas Pátrias. É a Residencial Millaray, que partilha a entrada com um salón de beleza, como se pode ver no link. Caricato, mas bem sudamericano.

Depois de uma Cristalina noite de choripan, bruschetas e empanadas, estamos listos para o primeiro enorme esticão da viagem. Directos de Caldera a San Pedro de Atacama, com paragem em Antofagasta para jantar. São oitocentos e tantos quilómetros. Com descanso, rotação de lugares nos carros, boa música e cigarros para os necessitados, tudo se faz. E espírito, que isto de dez marmanjos enfiados em jipes pode dar para nos chatearmos todos. O que nunca foi o caso.


[frente ao areal branco e ao mar azul claro da Bahía Inglesa;
Gonçalo C., Gonçalo M., Mico, Tomaz, Miguel, Diogo, Bernardo, João, Chico e Manel]

Faixa 03. The Killers - Mr. Brightside

A estrada abre-se para que fujamos deste Norte Chico que nos acolhe há dois dias, desde a saída sexta-feira à tarde de Santiago até esta manhã de domingo, 16 de Setembro de 2007. Com um ritmo Indie a puxar por nós no rádio do carro, é hora de subir pelo Norte Grande adentro. Seguimos junto à costa a maior parte da manhã, com pequeno desvio por um Santuario de la Naturaleza, o Granito Orbicular. Conjunto de formações graníticas com formas estranhas criadas por acção natural, a erosão da água do mar e do vento. Um pequeno rally todo-o-terreno, graças aos nuestros jipes.

E lá seguimos por la Panamericana, essa carretera que atravessa as três Américas, do Alasca à periferia da Antártida (ver traçado aqui). Em termos transversais, corre do Yucon ate Quellón, na ilha de Chiloé, Chile. Mas, paralelamente, corta o Chile em Santiago e liga Valparaíso, nossa velha conhecida -link- a Buenos Aires, para que os argentinos não se sintam excluídos. Não é uma auto-estrada. É um sistema de estradas, daí ser possível continuar para Sul e para Este ao mesmo tempo. É, no entanto, considerada a maior carretera, ou estrada, do Mundo. E é mítica, pelo menos para mim, já que não só o nome como a sua importância já o (agora) meu homónimo Manu Chao -link- a cantava (em Welcome to Tijuana, cidade mexicana por onde a Panam passa, e que, curiosamente, começou a tocar no computador enquanto escrevia este post), e que a correu para ficar a conhecer a Sudamérica, o que o inspirou e inspira a criar música profundamente bolivariana. [de Bolívar, Sudamérica e bolivarianismo falarei algum dia, até ao fim destes merry blues, em Fevereiro; temos tempo...]


[por la Panamericana, entre o Pacífico e o Atacama, com os Andes como pano de fundo]

Paragem em Chañaral para almoçar. É uma cidade estranha, com um ritmo desnivelado. Meio estação de serviço em tamanho pueblo pobre, com bombas de gasolina e talleres de volcanización (oficinas de recauchutagem) a bordejar a Ruta 5, um quarto balneário do pacífico, para onde milhares de pessoas acorrem no Verão (presumo que "de escassos recursos económicos", esse pobre eufemismo para "pobres" ou, melhor, "remediados"), e um último quarto cidade suja. O céu, agora e aqui cinzento, não ajuda, acentuando a falta de energia de Chañaral. Mas o sabor é de Sudamérica, era isto que queríamos, e venha de lá esse congrio frito a la casa. Ah, no meio da confusão, de gente que sobe para buses, uma feira artesanal e adolescentes nativos ébrios, encontro uma Bata (sim, esta cadeia de lojas, capitalismo em força).


[Chañaral, cores esbatidas debaixo de um céu cinzento]

À tarde, interrompemos o caminho directo para passarmos pela Reserva Nacional Pan de Azúcar -link-, onde se pode ver um pouco de tudo. Montanhas rochosas e secas escarpadas junto ao Pacífico, praias de areal sem fim, povo maluco que acampa ao frio, e fauna marinha interessante, como leões-do-mar e pinguins (não, não pingolins - pingolim é matraquilho; vêem como me mantenho atento?!). Acabamos por só ver paisagens, mas retomamos a Ruta 5 rumo a Norte motivados, com o espírito em alta. Aqui caberia um vídeo que fizemos enquanto tirávamos mais uma fotografia de grupo, mas está de uma alegria tão infantil que me auto-censuro. Parecemos crianças, aos saltos e aos gritos, as omnipresentes bandeiras portuguesa e chilena na mão, os tais dez marmanjos tugas. Ponham a imaginação a funcionar, porque provavelmente nunca verão este vídeo de homens, pois, homens já, de vinte e alguns anos, aos berros para o deserto e para a carretera como se tivessem 12 anos. Depois dessa manifestação de juvenilismo, lá entramos no Norte Grande, com Antofagasta a já 200 kms, quando o sol se põe.


[o pôr-do-sol e o efeito da mistura das nuvens e o enxofre das minas, algures no Atacama, a meio caminho entre Caldera e Antofagasta]

Faixa 04. Wolf Parade - I'll Believe in Anything

Antofagasta, capital da II Región, com o mesmo nome, aproxima-se, a noite já fechada sobre o deserto. Algum movimento, muitos autocarros de turismo, que são mais de 50% dos veículos que circulam nas estradas inter-urbanas chilenas. Frio cortante sente-se já dentro dos carros, alguma fome que aperta. É, em termos de caminho, a parte mais complicada da viagem, porque estamos cansados, hambrientos e algo enregelados. Daí a necessidade de um som mais enérgico, esta baptizada a "música do Mico", o único que se atrevia a passar minutos de cabeça ao vento, janela aberta, para grande sofrimento de quem seguia com ele no jipe. Um pormenor sobre Antofagasta - o Stefan, alemão que esteve connosco em Valpo e que foi agora adoptado como um tuga honorário, escreveu "FEO" junto ao nome desta ciudad no mapa. E não mentiu. Cidade portuária, de má fama, ruas escurecidas e a dar para o porco, restaurantes fechados ou de aspecto gorduroso, bares e hotéis de reputação duvidosa, Antofagasta acolheu-nos para jantar, não sem antes testar a nossa paciência e energia ao levar-nos para sentidos proibidos e labirintos de ruas. Lá acabámos com uma parrillada à frente, a comer depressa e em silêncio, tal era a necessidade de forças em forma de carne, muita carne, e empanadas de queijo. Salva-se o karaoke junto à praia, cujos vídeos se vão manter censurados até autorização dos artistas.


[fábricas à entrada de Antofagasta vistas do carro;
o único jogo de luzes que permite fugir ao escuro e sujo da cidade]

De músculos retemperados, embora o sono leve alguns a adormecer, lá seguimos para o último troço, penetrando no deserto profundo, rumo a San Pedro de Atacama através de Calama. Já cheira a sal.

3.10.07

I. Santiago p'ra trás das costas


«Digo-vos já, esqueço-me sempre de qualquer coisa», digo, sincero, para o Mico e o Chico. Desta vez, foram os cd de música. Passei a ouvir novos sons, foi o que foi, e revivi outros esquecidos.

A 50m, ao dobrar da esquina, estava à nossa espera o jipe. Suzuki Grand Vitara, verde escuro, poucos kms. Se navegar foi preciso, agora é guiar. Para Norte, vamos.

Burocracias e pagamentos, despachados da Bilbao Rent-a-Car, esperava-nos esse Norte, mas não ainda o deserto. Primeiro La Serena, na costa. E esperava-nos o outro jipe, já saído mais cedo. Um Suzuki, também, mas maior e cinzento, já com 6 portugueses entusiasmados - "num excitex"?! - com a perspectiva de descoberta desse grande e desconhecido Chile.

Por cá seguíamos quatro - Mico, Chico, Diogo e eu. Eu de directa, que a noite antes tinha sido de despedida dos vários grupos da Casa. "Despedida"; porque separámo-nos em grupos apenas pela semana das Fiestas Pátrias. Em 8 dias estaríamos todos juntos, mas como irmãos que somos até vamos sentir a falta uns dos outros.

Algumas palavras para estas Fiestas Pátrias. São vividas, e sinceras. São vividas, porque aproveitam para juntar dois feriados seguidos e, porque não, toda uma semana para descansar e/ou viajar. Este ano, quatro milhões de pessoas saíram das suas cidades - mais de dois milhões de Santiago - durante estes dias, alguns de sexta a quarta, outros de sexta a domingo. E sinceras. A bandeira é omnipresente, lavada e orgulhosa. Não como uma bandeira que se deixa de um evento desportivo para outro, com dois anos de diferença, já rota e descolorada.

Mas sigamos, que p'rá frente é que é o caminho. Paragem em Los Vilos, já junto ao Pacífico, para jantar. Bom pollo asado con papas. Algum cansaço e alguma tentação para ficar por cá a dormir. Mas os outros já estão em La Serena e esta já está aqui tão perto.


[de barriga cheia, fazermo-nos à estrada; Chico ao volante e Manel como co-piloto/fotógrafo, Mico e Diogo enjoying the trip lá atrás]

Lá vamos, e lá chegamos. Cansados, mas não todos, que há quem aproveite para ir sair. Tugas a varrer a noite da cidade serena. Eu não, não fui dos duros. Bastou-me uma directa, uma visita à embaixada de manhã, fazer a mala, esquecer-me de coisas e fazer quatrocentos e tal quilómetros. Para primeiro dia de viagem já foi comprido. E o caminho ainda se abre mais para Norte, quero aproveitá-lo todo.


[chegada a La Serena; luz, ainda que desfocada, ao fim da primeira estirada]

Fiestas Pátrias - Prólogo

Com alguns dias de atraso, cá segue o relato do que foi a nossa semana de descoberta do Norte do Chile. Algumas dicas;

1. a viagem tem uma banda sonora; antes de lerem o post carreguem no respectivo link - se aparecer um clip é mera coincidência, fechem a janela e oiçam só a música enquanto lêem

2. quando faltarem fotografias - eram quatro máquinas e só tenho as imagens da minha - recorro à minha "arte"; mal possa substituo os dibujos por fotografias (melhores que as que eu tirei, até!)

3. não liguem ao ritmo a que vou postar os VII capítulos; quando puder vou escrevendo

Boa viagem.

1.10.07

Parrillada 4

Mais uns quatro dias sem escrever. A verdade é que as coisas por cá seguem rápido, e cadeias de eventos sucedem-se sem que o tempo, ah esse maldito, permita sentar-me ao computador com tempo suficiente para a clareza que este blog merece. Ou quem o lê, ao menos.

Bom, o que se tem passado, perguntam? Na semana passada foi acertar as contas da viagem, sobretudo do aluguer dos carros para as Fiestas Pátrias. Como é óbvio, saíu cara a brincadeira, sobretudo com alguns danos nos jipes que o Rent-a-Car nos cobrou (em exagero?! explorando o estrangeiro?!) e ainda quedam algumas coisas por acertar.

De quinta para sexta chegou a Sanchinha :), tendo aproveitado o fim-de-semana para mostrar algumas coisas de Santiago, poucas por enquanto. Ah e sábado organizámos uma grande feijoada à portuguesa em minha Casa. Bom, bom. Muito gabada, até pelos donos da casa, Carmen Glória e Alfredo, que passaram por lá a controlar.

Hoje, prueba de Semninário de Contratación Internacional (en inglés), tendo aproveitado para espalhar mais um pouco de magia (leia-se inteligência) tuga por terras sudamericanas. Ou se calhar nops. É que a barra está baixa, apenas no 4 na escala de 1 a 7, por isso os incentivos a estudar muito acabam por ser poucos.

De futuro, bem pronto, aqui no Chile-Out, esperem uma parrillada de fotografias - a pedido de várias famílias, e a história da Road Trip em sete capítulos.

PS - este post foi escrito na quente e llena de gente sala Crisol - sala dos computadores - da faculdade, sem poder recorrer ao ditongo "ao" com o proverbial til. Qualquer palavra que dele necessite e que tenha escapado ao controlo do autor, e assim ter sido utilizada, é fruto da pressa para sair daqui e nunca deve ser levada como falta de capacidade da sua parte ou mesmo um insulto ao leitor.