Os dias esbatem-se. Já não sei se estou a vivê-los ou simplesmente caminho num corredor de espaço e tempo indefinidos, espreitando de vez em quando para portas entreabertas e vendo, em cada uma delas e apenas por breves segundos, imagens de um dia no Chile. Dias que parecem pertencer a outro e outros. Eu, no silêncio do meu quarto, às tantas da manhã, quando a luz da peça 18 é a única acesa da Casa Suecia, já mal me lembro, tão curto foi o tempo que espreitei, desses dias que vi passar.
Das últimas semanas há quatro ou cinco datas que fixo como marcos e, em função delas, tento reconstruir a vida que por cá passou. Dia 14 de Outubro saíu de cá a Xinha; dia 26, chegou a mãe. De 27 a 30 estive na Ilha da Páscoa - honras de post próprio, talvez mesmo posts. De 31 de Outubro a 4 de Novembro mostrei Santiago à mãe e às Mafaldas, incluindo a noite à prima. E, para acabar, dia 8 de Novembro conheci Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa, evento que também terá o seu post individual. [formalismo, claro, não vá o acaso trazer alguém da Presidência a este blog]
Ora, aparte as historietas que terão os seus parágrafos de destaque, o que é que se tem passado por aqui? Um pouco de tudo e um pouco de nada. Conhece-se mais pessoas, claro, mas o mais forte é aprofundar os conhecimentos que já se tem. Posso dizer neste momento que tenho cá amigos de todos os continentes. Excepção feita à Antárctida mas, de acordo com as discussões geográficas que vamos tendo (acontece em todos os Erasmus/intercâmbios?), há quem não a considere um continente.
Tenho alternado entre a vida de estudante, ao meu género - muito trabalho em casa e pouco nas aulas - e a de estrangeiro, passeando ao acaso. É dizer, lá tenho feito uns papers e umas redacções - todos com notas acima do 6, incluindo um 7 (igual a 20) e tenho ido a poucas aulas. Bom, agora é indiferente que não tenho mais aulas, só de Español. Nos mientras vou indo a umas fiestas e temos feito algumas, menos mas melhores, cá em Casa. Das caseiras é de destacar a Festa Sem Roupa/Máscaras/Eighties (pessoas houve que vieram só vestidas com coisas que não fossem roupa - toalhas, bandeiras, fraldas, etc. - outras de máscaras ao acaso e, outras ainda, de Anos 80). Fora de casa, voltei a La Piojera, essa tasquinha mais tradicional de Santiago e lar do terremoto (vinho branco com gelado de ananás), onde já tinha ido com a Xinha.
Com a mãe e as Mafaldas visitámos um pouco de tudo. Fui finalmente ao interior de La Moneda, o palácio do Gobierno de Chile, e ao Cerro de Santa Lucia, para além de ter ficado a conhecer o Santuário de Schoenstatt de Santiago. A acompanhar, boa comida em sítios óptimos da cidade como o Liguria, de novo, o Como Agua para Chocolate, e o Peperone, aquele das empanadas óptimas no Barrio Brasil. Resumindo, foi uma semana sem cozinhar. Ficou por ver a casa de Pablo Neruda cá em Santiago, La Chascona. Mas tenho tempo.
Em termos físicos, é de destacar o meu novo pelo. Cabelo rapado (patilhas fora, idem), se não me engano no dia 19 de Outubro que, entretanto já lá vai um mesinho certo, tem crescido com tranquilidade. Tenho procurado comer mais saudável, cozinhando - agora sim! - uma coisa nova todos os dias. Para ajudar à boa forma, abdominais e flexões todos os dias de manhã e à noite, que não há dinheiro para ginásio e o da Universidade é longe. Quanto a futeboladas, só hoje voltei a espalhar magia em canchas chilenas. Ah, antes fosse! Por falar em futebol, no dia 21 de Outubro assisti ao grande derby santiaguino, Colo Colo - Universidade de Chile, no Estádio Monumental. Experiência brutal ao lado dos hinchas do Colo Colo, ninguém se sentou o jogo todo. O bairro à volta do Estádio, que não se vê de fora porque é escavado no chão, esteve fechado por barricadas dos Carabineros. Controlo total, que não evitou desacatos e 20 detidos. Dentro das quatro linhas, o Colo Colo cedeu um empate caseiro a 2-2, tendo falhado um penalti e deixado a vitória escapar ao sofrer um golo nos últimos minutos. Quando tiver fotografias coloco num albúm dedicado a Santiago aqui ao lado.
O meu castelhano evolui seguro, com alguns chilenismos já dominados em conversas quotidianas. Nos próximos dias virá um post/dicionário das expressões próprias do castelhano chileno. Também estou com um inglês escorreito já que mais frequentemente do que volta e meia falo inglês com os "angloparlantes" cá de Casa. Tenho tentado praticar o francês sempre que posso mas tem sido difícil - só conheço um francês, o Benjamin, e ele gosta de falar espanhol. Depois há a Sanaa, a franco-marroquina do curso de Español, com quem falo francês via net. Mais as experiências com a Marine, em San Pedro de Atacama, e o francês que subiu comigo a la cumbre do Volcán Villarica.
Tenho tentado fazer o máximo que posso só que, embora saibam bem as tardes cá em casa com os meus "hermanos suecos", às vezes dou por mim com um sentimento de culpa, ou apenas medo, não sei, por não estar seguríssimo, sem dúvidas, se estou ou não a aproveitar ao máximo. É que já nos demos todos conta, está a acabar. O primeiro da "nossa geração" (Casa Suecia 2º Semestre 2007) a voltar para casa foi o Heider, brasileiro de Salvador da Bahía, no fim-de-semana passado. Não raras vezes é possível encontrar-me a olhar nostálgico para uma parede, um quadro, o céu, uma pessoa. Eu e todos. É que é fácil imaginar uma ampulheta a esvair-se, rapidamente, de areia, levando-nos a todos daqui para fora. O meu dia 100 foi esta quinta-feira, 15 de Novembro, e já só me faltam 26 dias em Santiago.
Para a família, em Portugal, são boas notícias. [serão?] O tempo esgota-se e eu sigo são e salvo, claro. E, num instante, vou estar em Lisboa. Eu, na ânsia de beber o que me resta de Chile, deixo telemóveis e mails de lado, excepto o da faculdade mas esse não o têm. Até evito o blog, ainda que tenha recuperado alguma constância. Comunico pouco com a família mas tento fazer saber que está tudo bem sempre que posso. Como no caso do terramoto de quarta-feira, em que eu, era meio-dia e tal, comecei a pensar em tremores de terra. Vim a saber mais tarde, tinha havido um no Norte do Chile, 7,7 na escala de Richter, e que está a afectar tantos sítios que conheci na nossa road trip tuga. Por sorte, as construções são mais sólidas que no Peru e não teve o efeito devastador que teve o de Agosto nesse país, ainda que quase tão forte. E, afinal, senti-o bater devagarinho cá em Santiago.
Aproveito as minhas viagens de transportes públicos, agora que já conheço os truques, atalhos, horários que não existem e as manhas dos autocarros da Transantiago e dos metros, para ler. Tenho lido muito, à média de um livro por semana, tentando guardar uns para a Viagem pela Sudamérica. Entre o que tenho lido destaca-se El jardín de al lado, de José Donoso, romancista chileno; O Poder dos Sonhos, conjunto de artigos de Luís Sepulveda, escritor revolucionário chileno; A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, turco Prémio Nobel da Literatura de 2006; e Viagens por um País Longo e Estreito, de Sara Wheeler, escritora inglesa que é paga para viver e viajar em países estrangeiros e escrever sobre isso. Rica profissão. Se alguém conhecer um editor que não seja nada exigente apresente-me que eu sou capaz de ficar por aqui. [pronto, agora arrasei o coração da família e da namorada]
Rapidamente, para quem quiser uma amostra do que se tem passado por estes em Santiago, onde a temperatura tem chegado aos 30º C e os índices de radiação solar aos 16, acima do nível máximo saudável que é 10, aqui ficam umas fotografias de uma das noites; é que normalmente não se tira fotografias enquanto se escreve papers, ou se lê um livro, ou se vê um filme, ou se come, ou... Bom, mas para fotografias de dia, para as poucas que há, esperem por uma nota minha a anunciar novos albúns aqui nos Retratos da Sudamérica.
[Andrés (Colômbia), Joaquín (Equador), Juan (Espanha), Manu (Portugal), Tuomas (Finlândia)]
[numa sala a céu aberto, em casa do Pancho (Chile), tropecei e caí sentado ali;
ainda hoje tenho espinhos]
[Manu, Joaco, Juanito y Andrésito;
ah e digam adeus àquele cabelo, foi a última fotografia]
Enfim, numa frase, «vi, li, comi, bebi, brinquei, saltei, joguei, ri».