Eu tenho um problema. Não é muito grande, mas existe. Quando quero escrever sobre acontecimentos já com alguma distância dá-me um certo bloqueio. Não é falta de vontade de escrever mas, por já ter passado algum tempo, perco o ângulo de escrita, a forma como quero abordar as coisas. Tudo isto se resolveria se usasse mais o Moleskine que comprei antes de vir para cá mas a sede de viver aquilo que se vai passando leva-me a usé-lo muito pouco. Deste problema nasce alguma hesitação no desenvolvimento do blog. Felizmente tive uma ajuda externa. Ferreira Fernandes, colunista no DN, e que leio quase todos os dias, opina hoje sobre a facilidade de em certos eventos da História se esquecer o cidadão anónimo que neles participa. E, porque "good writers borrow from other writers, great writers steal from them outright", fiquei-lhe com a ideia, ainda que imperfeita, e com o título deste artigo. Obrigado Ferreira Fernandes.
A conhecer um país estrangeiro facilmente nos damos conta das suas idiosincrassias, da sua identidade. Como cultura e como sociedade. Sabemos até descrever, em termos gerais, as suas gentes. Mas, a não ser que travemos amizades mais que de passagem, mais que superficiais, rapidamente esquecemos as caras que encontrámos e ficamos só com as nossas impressões. A maior parte das vezes erradas ou incompletas, no mínimo.
Gostava de falar com maior profundidade dos chilenos e, aqui em particular, dos chilotes. Não o posso fazer, contudo. Resta-me apenas, além de descrever sucintamente os nossos dias em Chiloé, falar da cultura e identidade do povo chilote.
Mística e misteriosa, a sociedade que se desenvolveu em Chiloé (ver informação geral aqui, e sobre a mitologia aqui) é originariamente Mapuche, nativos do sul do Chile. Os que se fixaram neste arquipélago estabeleceram, no entanto, uma micro-cultura com um dialecto próprio (huilliche, face ao mapudungun comum aos Mapuche) e acreditando na existência de seres humanos e sobre-humanos com poderes especiais, sobretudo para "explicar" a geografia chilote, a relação de forças entre o azul do mar e o verde da terra.
Faixa 05. Youth Group - Forever Young

[no ferry do Continente para a Isla Grande]
Este contraste colorido conhecemo-lo a atravessar o necessário ferry, do continente para a Isla Grande, a sul de Puerto Montt. Depois, à medida que nos embrenhávamos mais para dentro da Ilha, eu e a Sanchinha rendemo-nos às suas cores, principalmente o verde. Sim, realmente faz lembrar a Irlanda. Chegados a Castro, encontramos outras fontes de cor - os palafitos, casas de madeira sobre a água, assentes em estacas.

[a cor dos palafitos]
Castro é uma cidade (cidade?) pequena mas com um ritmo frenético. Ao menos tão frenético quanto um pueblo com pouco mais que uma dúzia de ruas pode ser. Serve como porto central do arquipélago e ponto mais importante de trocas. A sua rua principal - San Martín, que termina, adivinharam, numa Plaza de Armas, qual rambla envolve-nos e engole-nos enquanto buscamos alojamento. No fim de algumas recusas, nossas e de hotéis, lá encontramos o Hostal Cordillera.
Um dos quadros dentro do Hostal, ao lado da casa de banho, por acaso, descreve as figuras da mitologia chilote. Todas explicam algo - as ilhas e o arquipélago que se formou, gravidezes inesperadas, noites baças e sem memória causadas pelo álcool, tudo.
O grande contraponto a este paganismo de índole Mapuche são as igrejas de madeira de Chiloé. Construídas por missionários jesuítas, são já cabeça de cartaz turístico do arquipélago. Entre o Parque Nacional, que ocupa mais de 50% da Isla Grande, e os pinguins da Península de Punihuil. As igrejas, símbolo já da ilha, portanto, não representam assim tão idealmente a evangelização dos chilotes, já que muitos, se não todos continuam a dar importância aos ritos e mitos anteriores à Cristianização.

[a Iglesia de San Francisco, em Castro]
Pelo pouco tempo que passámos em Chiloé, e por alguma falta de planeamento, acabámos por concentrar-nos em conhecer as ditas igrejas. Ah, e em comer bem, especialmente peixe. E, claro, o curanto, cozido de vários tipos de carne, peixe, marisco e batata. Discute-se se a sua origem é Mapuche ou polinésica. Uma polémica importante do ponto de vista da colonização do Pacífico e da Sudamérica. A ela voltarei dentro de alguns posts.

[a Sanchinha com um palafito restaurante por trás]
Para conhecer algumas das igrejas - são dezenas - fizemos um roteiro dividido em dois dias e que nos afastou decididamente da rota do Parque Nacional e dos pinguins, para cada qual precisaríamos de um dia inteiro.
Foi assim que demos por nós em Chonchi, primeiro, numa tarde de sol. O ponto mais a sul do Globo onde já estive; e não creio que conheça alguém que tenha estado tão perto da Antártida - a Cidade do Cabo, África do Sul, é mais a norte. Maldita a hora!; acabei por deixar lá, por descuido meu e má fé de uma família chilena, os meus (da família) Ray Ban Aviator. Rest In Peace, my friends.

[Igreja de Chonchi]

[tirei os óculos para sacar esta chapa de Chonchi...e o resto é história]
Faixa 06. Evermore (Dirty South Remix) - It's Too Late
No dia seguinte, o último (quinta-feira, 11 de Outubro), fomos até à Isla Quinchao, a segunda maior, através de Dalcahue (aqui, mais um pueblo mais uma igreja). Em Achao, a capital daquela ilha, foi construída a primeira igreja chilote. E deste pueblo tem-se uma vista incrível, em dis de céu límpido como nesse, para o continete e para os Andes, quando La Cordillera penetra na Patagónia.

[Igreja de Dalcahue]

[um certo tuga "sudamericanizado" em Achao, frente ao mar, com os Andes lá no fundo]

[Igreja de Achao, a mais antiga de Chiloé]
Despachado mais um óptimo almoço marinho e vista a igreja entrámos em mais uma corrida contra o tempo, típica de bagpackers ("mochileiros"), portugueses, ou minha. O bus para Santiago - agora pela Cruz del Sur, não pela TurBus - saía de Castro às 17.05h, e o de Achao para aí chegava cinco minutos antes, via ferry em Dalcahue. Isto imaginando uma situação sem atrasos, que há sempre, ainda que mínimos.
Sem telemóvel ("morrera" em Pucón), lá liguei de uma cabine para o Terminal de Buses de Castro a pedir para que o nosso autocarro saísse mais tarde. Disseram que sim, sem hesitar. Esta atitude tranquila, mesmo que causa de atrasos, é que conquista o estrangeiro a cada passo que dá no Chile, especialmente fora de Santiago.
A viafem de saída de Achao foi a grande velocidade, dentro do possível que são 60 kms/h, com o micro bus apinhado e a porta aberta. Lá nos deixaram numa ponta de Castro, de onde corremos para uma "cama com rodas" (viajámos num Salon Cama, melhor que primeira classe de avião). Chegámos a tempo, saímos tarde mas, dezoito horas depois, estávamos do que a tempo em Santiago.

[caminha!]
Para trás ficava a Patagónia insular, os lagos, o verde, o misticismo Mapuche e, lá está, os chilotes que não conhecemos.
A conhecer um país estrangeiro facilmente nos damos conta das suas idiosincrassias, da sua identidade. Como cultura e como sociedade. Sabemos até descrever, em termos gerais, as suas gentes. Mas, a não ser que travemos amizades mais que de passagem, mais que superficiais, rapidamente esquecemos as caras que encontrámos e ficamos só com as nossas impressões. A maior parte das vezes erradas ou incompletas, no mínimo.
Gostava de falar com maior profundidade dos chilenos e, aqui em particular, dos chilotes. Não o posso fazer, contudo. Resta-me apenas, além de descrever sucintamente os nossos dias em Chiloé, falar da cultura e identidade do povo chilote.
Mística e misteriosa, a sociedade que se desenvolveu em Chiloé (ver informação geral aqui, e sobre a mitologia aqui) é originariamente Mapuche, nativos do sul do Chile. Os que se fixaram neste arquipélago estabeleceram, no entanto, uma micro-cultura com um dialecto próprio (huilliche, face ao mapudungun comum aos Mapuche) e acreditando na existência de seres humanos e sobre-humanos com poderes especiais, sobretudo para "explicar" a geografia chilote, a relação de forças entre o azul do mar e o verde da terra.
Faixa 05. Youth Group - Forever Young
[no ferry do Continente para a Isla Grande]
Este contraste colorido conhecemo-lo a atravessar o necessário ferry, do continente para a Isla Grande, a sul de Puerto Montt. Depois, à medida que nos embrenhávamos mais para dentro da Ilha, eu e a Sanchinha rendemo-nos às suas cores, principalmente o verde. Sim, realmente faz lembrar a Irlanda. Chegados a Castro, encontramos outras fontes de cor - os palafitos, casas de madeira sobre a água, assentes em estacas.
[a cor dos palafitos]
Castro é uma cidade (cidade?) pequena mas com um ritmo frenético. Ao menos tão frenético quanto um pueblo com pouco mais que uma dúzia de ruas pode ser. Serve como porto central do arquipélago e ponto mais importante de trocas. A sua rua principal - San Martín, que termina, adivinharam, numa Plaza de Armas, qual rambla envolve-nos e engole-nos enquanto buscamos alojamento. No fim de algumas recusas, nossas e de hotéis, lá encontramos o Hostal Cordillera.
Um dos quadros dentro do Hostal, ao lado da casa de banho, por acaso, descreve as figuras da mitologia chilote. Todas explicam algo - as ilhas e o arquipélago que se formou, gravidezes inesperadas, noites baças e sem memória causadas pelo álcool, tudo.
O grande contraponto a este paganismo de índole Mapuche são as igrejas de madeira de Chiloé. Construídas por missionários jesuítas, são já cabeça de cartaz turístico do arquipélago. Entre o Parque Nacional, que ocupa mais de 50% da Isla Grande, e os pinguins da Península de Punihuil. As igrejas, símbolo já da ilha, portanto, não representam assim tão idealmente a evangelização dos chilotes, já que muitos, se não todos continuam a dar importância aos ritos e mitos anteriores à Cristianização.
[a Iglesia de San Francisco, em Castro]
Pelo pouco tempo que passámos em Chiloé, e por alguma falta de planeamento, acabámos por concentrar-nos em conhecer as ditas igrejas. Ah, e em comer bem, especialmente peixe. E, claro, o curanto, cozido de vários tipos de carne, peixe, marisco e batata. Discute-se se a sua origem é Mapuche ou polinésica. Uma polémica importante do ponto de vista da colonização do Pacífico e da Sudamérica. A ela voltarei dentro de alguns posts.
[a Sanchinha com um palafito restaurante por trás]
Para conhecer algumas das igrejas - são dezenas - fizemos um roteiro dividido em dois dias e que nos afastou decididamente da rota do Parque Nacional e dos pinguins, para cada qual precisaríamos de um dia inteiro.
Foi assim que demos por nós em Chonchi, primeiro, numa tarde de sol. O ponto mais a sul do Globo onde já estive; e não creio que conheça alguém que tenha estado tão perto da Antártida - a Cidade do Cabo, África do Sul, é mais a norte. Maldita a hora!; acabei por deixar lá, por descuido meu e má fé de uma família chilena, os meus (da família) Ray Ban Aviator. Rest In Peace, my friends.
[Igreja de Chonchi]
[tirei os óculos para sacar esta chapa de Chonchi...e o resto é história]
Faixa 06. Evermore (Dirty South Remix) - It's Too Late
No dia seguinte, o último (quinta-feira, 11 de Outubro), fomos até à Isla Quinchao, a segunda maior, através de Dalcahue (aqui, mais um pueblo mais uma igreja). Em Achao, a capital daquela ilha, foi construída a primeira igreja chilote. E deste pueblo tem-se uma vista incrível, em dis de céu límpido como nesse, para o continete e para os Andes, quando La Cordillera penetra na Patagónia.
[Igreja de Dalcahue]
[um certo tuga "sudamericanizado" em Achao, frente ao mar, com os Andes lá no fundo]
[Igreja de Achao, a mais antiga de Chiloé]
Despachado mais um óptimo almoço marinho e vista a igreja entrámos em mais uma corrida contra o tempo, típica de bagpackers ("mochileiros"), portugueses, ou minha. O bus para Santiago - agora pela Cruz del Sur, não pela TurBus - saía de Castro às 17.05h, e o de Achao para aí chegava cinco minutos antes, via ferry em Dalcahue. Isto imaginando uma situação sem atrasos, que há sempre, ainda que mínimos.
Sem telemóvel ("morrera" em Pucón), lá liguei de uma cabine para o Terminal de Buses de Castro a pedir para que o nosso autocarro saísse mais tarde. Disseram que sim, sem hesitar. Esta atitude tranquila, mesmo que causa de atrasos, é que conquista o estrangeiro a cada passo que dá no Chile, especialmente fora de Santiago.
A viafem de saída de Achao foi a grande velocidade, dentro do possível que são 60 kms/h, com o micro bus apinhado e a porta aberta. Lá nos deixaram numa ponta de Castro, de onde corremos para uma "cama com rodas" (viajámos num Salon Cama, melhor que primeira classe de avião). Chegámos a tempo, saímos tarde mas, dezoito horas depois, estávamos do que a tempo em Santiago.
[caminha!]
Para trás ficava a Patagónia insular, os lagos, o verde, o misticismo Mapuche e, lá está, os chilotes que não conhecemos.
2 comentários:
Caro manel,
É mesmo bom seguir as tuas aventuras ao jeito do "che". Espero que estejas bem y disfrutando de todo! Um grande abraço
querido Manel, gosto muito de ler o seu blog, e aprendo imenso com a leitura! Nem sempre tenho tempo para seguir os links todos numa primeira leitura, mas volto atrás e diligentemente abro as páginas todas, mesmo algumas da wikipedia que são menos "estimulantes". Este exercício faz-me sentir muito mais próxima de si, porque estou a acompanhar, em diferido, o mesmo percurso que o Manel fez. E agora que já estive no Chile, compreendo o fascínio que sente por esse país, e tenho muita vontade de voltar, e seguir os mesmos caminhos, já com a sabedoria de quem leu as suas peripécias.
Obrigada Manel, por continuar a ter paciência para escrever com tanto cuidado e preocupação pelos leitores, que sei que são mais do que o Manel talvez pense, porque se coibem de deixar aqui os seus comentários...
Uma agradável surpresa encontrar aqui o comentário do Perru, de quem também já tenho saudades!!
Desculpe se este comentário ficou muito caseirinho, nesta fase já toda a gente sabe que a sua famílhia lê o blog...
Estou cheia de curiosidade pelas impressões da ilha da Páscoa!
Parabéns pela escrita e por tudo, cada vez vejo mais como o meu filho é mesmo muito inteligente!
Beijinho da mãe
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